Escadaria |
Escrito por Bete Marun | |
22-Out-2008 | |
A escada de mármore branco em forma semicircular une o pavimento dos quartos aos cômodos sociais. A luz do sol que a ilumina é colorida pelos vitrais que desenham vasos com flores. É certo que o vidro não pode reproduzir a leveza das flores naturais, mas as que a luz desenha nos degraus da escadaria parecem vivas.
Tudo isto pertence a uma casa que fica não sei onde e da qual não importa nem o tamanho nem a imponência. A escadaria é o local mais bonito dela e muitas vezes Mariana sobe e desce seus degraus levando na imaginação as cenas que gostaria de viver. Sobe pulando os degraus como uma menina inquieta e desce com porte de rainha olhando de cima os que supostamente a esperam. Vai e vem cada vez mais concentrada em sua brincadeira. A subida exige esforço físico e não há como manter o porte elegante, mas para descer graciosos movimentos de todo o corpo. Imagina o saguão cheio de pessoas a aplaudi-la. Está com um belo vestido longo e desce lentamente apoiando-se levemente no corrimão dourado. Lá em baixo está o príncipe encantado? Nem nos quartos do andar superior, nem nas salas majestosamente mobiliadas ela consegue sentir-se tão bem, tão feliz quanto na escadaria. Se olhar de baixo para cima uma cor rósea ilumina o último degrau branco. Se olhar de cima para baixo vê o verde no primeiro e mais arredondado deles. Em cima dorme-se embaixo come-se e ela não que nenhuma das duas coisas. Quer continuar subindo e descendo a escadaria. __Pare com isso, adverte a mãe irritada. Mariana não responde, deseja chegar lá em cima. Não se cansa de admirar o colorido que transpassa o vitrô. Brinca de casinha nos degraus. Coloca a cama de boneca bem no canto para que a luz azul mais escura proteja o sono de sua filha. O fogãozinho e as panelinhas podem ficar no degrau mais abaixo bem iluminado. O vizinho mora no degrau de cima ou no de baixo, tanto faz, contanto que a luz vermelha incida sobre ele. __Não pode brincar de casinha na escada, assim você atrapalha todo mundo, observa a avó. Mariana também não dá atenção a ela e afasta o carrinho da boneca para que a velha consiga descer. Estranho e gostoso o prazer que sente em colocar seus brinquedos nos degraus. __Com tanto espaço lá fora por que você não vai brincar no quintal? Mariana não atende ao apelo. O espaço lá fora é grande. Um jardim bem cuidado com roseiras rodeadas a azáleas. O quintal com árvores centenárias que exigem respeito e admiração. Não que invadir o espaço das flores nem das majestosas árvores frutíferas. Prefere a escadaria que, com sua frieza marmórea, perde um pouco de calor colorido. Talvez mais que tudo seja a vontade de contestar os espaços determinados. Quer viver sua fantasia infantil num lugar que não é próprio, que não foi feito para brincar, mas que exerce sobre ela o fascínio colorido das guirlandas do vitrô iluminadas pela luz do sol. *** Tudo aconteceu tão depressa. Conseguiram obrigá-la a abandonar o fogãozinho e as panelinhas mais cedo do que desejava. __Você já é uma mocinha, recolha seus brinquedos e vá ajudar sua mãe na cozinha. Não podemos mais ter empregada. Seus sonhos foram sendo embaçados pela força das circunstâncias. A luz do sol não conseguia mais atravessar o vitrô sujo pela fuligem dos carros que passavam pela grande avenida. Seu ultimo ato de rebeldia foi deixar o vizinho se instalar no canto esquerdo da escada muito antes do que seria o recomendável. Abandonou seus sonhos. Precisou colocar uma grade na parte de cima da escadaria para que seu filho não caísse e na parte de baixo para que o cachorro não subisse. Toda vez que descia e subia tinha que abrir as duas "porteiras". Prendeu o espaço colorido como a obrigaram a amarrar sua rebeldia. *** __Ande logo Mariana. O pessoal da mudança já chegou. Avise o vizinho que se instalou no terceiro degrau. Está na hora. Naquele dia Mariana não conseguiu deixar de chorar quando olhou pela ultima vez a imponente escadaria de mármore. Estava suja. O branco antes alvo e o corrimão reluzente estavam escuros e sem brilho. Ela sentia que a mudança era castigo que merecia por não ter se comportado como devia. O pai e a mãe sempre reclamavam das despesas que a família prematura acrescentara. Não conseguiam compreender que seu marido estava procurando emprego embora ela tivesse consciência de que ele se instalara no degrau mais confortável sem maiores preocupações. A proposta de venda da casa era irrecusável. Poderiam comprar dois apartamentos e assim forçariam o vizinho a tomar vergonha e assumir sua família. Apesar de todas as dificuldades em que viviam ela não conseguia deixar de subir e descer a escadaria de mármore imaginando situações deslumbrantes. À noite, depois de todos já estarem acomodados, o cachorro lá forra e o filho dormindo tranqüilo abria as duas portinhola de madeira e iniciava suas andanças pela escadaria para restaurar os sonhos e a energia gasta durante o dia. Não colocava mais brinquedos sobre os degraus, mas pisava neles com delicadeza como se quisesse acariciá-los e agradecer os sonhos que eles ainda a faziam sonhar. *** No primeiro dia, já instalada no pequeno apartamento, decidiu descer as escadas do edifício. Chegou lá embaixo exausta e com as pernas tremendo. __ Por que não usou o elevador? Dez andares é muita coisa pra descer, advertiu o marido. Mariana não respondeu. Ele não compreenderia a saudade que sentia dos degraus brancos e coloridos como um caleidoscópio. Não sei se foi no mesmo dia da mudança uma semana depois ou dois anos mais tarde, o certo é que Mariana resolveu passar pela avenida barulhenta. Viu então sua antiga casa com as entranhas abertas, a boca enorme expelindo móveis, vestidos, telefones celulares, aparelhos eletrônicos, etc., exibindo faixas que convidavam o consumidor. Seu coração doeu muito como se a transfiguração tivesse ocorrido em seu corpo. Um impulso irresistível fê-la parar e entrar na loja contendo a vontade de insurgir-se contra o que tinham feito. Uma moça veio atendê-la. Mariana procurou se controlar e fingiu estar interessada num sofá amarelo exposto no andar superior. Tristemente observou que a sala de sua antiga casa expunha mesas, cadeiras, estofados e tapetes numa ordem jamais concebida por sua mãe. Derrubaram paredes transformara antiga e acolhedora sala de almoço num frio e formal escritório. *** Mariana estava ansiosa. Olha para tudo e sente que aquela casa, em especial, a escadaria, tinha a força de seus desejos de construir uma vida diferente. A perda da casa foi um grande sofrimento para todos, mas nunca ninguém notara as flores nos degraus da escadaria. Nunca ninguém percebera que as árvores do quintal tinham troncos grossos e raízes que, como cobras, avançavam e se escondiam sob a terra. Nunca ninguém dera atenção às azaléias e às rosas do jardim que disputavam cores a cada primavera. Preocupavam-se apenas com o entrar e sair de visitas que sua mãe recebia com orgulho de grande dama. Estas eram as ocasiões em que mais gostava de subir e descer a escadaria. Deixava o sapato de salto alto de sua mãe escapar de seus pés pequenos e estalar nos degraus provocando um inevitável constrangimento nos convidados elegantes. E quando isso ocorria era certo que à noite, depois que todos fossem embora, seu pai iria até seu quarto para a reprimenda habitual. Ele devia saber que nada adiantaria proibi-la porque ela voltaria a fazer estalar o salto do sapato a fim de que ele viesse mais à noite lhe dar atenção. Nunca ninguém ligava pra ela, a não ser que estivesse brincando de casinha nos degraus da escadaria. Nunca ninguém se importava com suas andanças noturnas. Ninguém enxugou suas lágrimas quando o vizinho furou os olhos da sua boneca. Naquele tempo não conseguia compreender o que seus pais tanto tinham para falar com aquela gente estranha que entrava e saia de sua casa. Sua avó era a única que implicava com o entra e sai que, segundo ela, era de pessoas sem educação, sem berço, sem família nobre. Eram aproveitadores que tinham levado seu filho ingênuo a fazer maus negócios e perder tudo. *** __Eu gostaria de ver aquele sofá amarelo exposto no andar superior. __Pois não. Temos um igual aqui mesmo, aponta a vendedora. Mariana fica constrangida, Precisa insistir, precisa arranjar um meio de subir até o segundo andar. __Não, acho que não é da mesma tonalidade. __É o mesmo sofá, posso lhe garantir. __Para mim este é um pouco mais claro, quero ver o que está lá em cima. Diante da situação imperativa a vendedora, meio impaciente, encaminha Mariana para um elevador instalado no corredor que antes levava ao quintal. Ela se opõe. Sabe que aquele não é o caminho da escadaria. __Não podemos subir pela escada? Detesto elevadores. __Pois não, responde a moça meio desconfiada. Podemos ir por aqui. Enfim a escadaria... o vitrô... Mariana sobe lentamente os degraus saudosos. Sente um intenso prazer e deixa que o sapato escape e estalem nos degraus de mármore. Observa que limparam o vitrô, recuperaram o branco do mármore e que lustraram o corrimão dourado. Displicentemente examina o pretendido sofá amarelo colocado exatamente onde antes ficava sua cama. Talvez pudesse mesmo comprar aquele sofá! A idéia vem tão rápida quanto se vai. Sua cama de menina nunca foi o lugar de seus sonhos. Despede-se da vendedora. Desce vagarosamente a escadaria pisando leve e cuidadosamente para não perturbar o sono de sua boneca. A cada degrau deixa que a luz atinja seu rosto, ora azul, ora rose, ora verde. Retorna colorida da altura de seus sonhos para o chão da realidade de sua casa transfigurada. BETE MARUN, paulistana que se aventurou em contos eróticos (revista Status) descobrindo o prazer de escrever. Algumas outras publicações de contos, não necessariamente eróticos, me renderam outros prêmios e a publicação de um livro O olhar do macaco. Cadastrada no Dicionário crítico de escritoras brasileiras, continuo brigando e me apaixonando pelas letras apesar de morrer de medo delas. |
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