Uma história fantástica: A Dama do Casarão, de Milton M. Azevedo |
Escrito por Eliane de Alcântara Teixeira | |
06-Out-2010 | |
Eu não acredito em fantasmas, mas... Quantos de nós, pressionados, não completaríamos essa frase com ...que tem, lá isso tem? Afinal, somos uma sociedade em que convivem, quase sempre pacificamente, as religiões mais variadas, e onde o mesmo indivíduo não vê nenhuma contradição em ser católico pela manhã, espírita pela tarde e umbandista pela noite. Atitude essa sintetizada por Riobaldo, protagonista‑narrador de Grande Sertão: Veredas, ao dizer que a salvação da alma é "muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue." Não surpreende, pois, que tão ecumênica atitude com relação ao sobrenatural ofereça amplo espaço à crença em espíritos, fantasmas, ou almas do outro mundo, nem que os chamados "causos de assombração" tenham sido sempre um elemento vital das nossas tradições populares, que em maior ou menor medida, contribuíram para forjar a nossa visão cósmica coletiva - uma ampla tenda onde até filhote de mula‑sem‑cabeça encontra um cantinho para descansar.
É em tal contexto cultural que se insere o romance de Milton M. Azevedo, A Dama do Casarão (Vercial e-books, julho de 2010, disponível em http://www.amazon.com/), cujos protagonistas, Bete e Jarbas, gêmeos adolescentes, e o seu primo Daniel, um jovem chegado dos Estados Unidos, vão passar uns dias com a sua avó Bia. Nessa narrativa rápida e divertida, em que os três jovens trocam idéias e alfinetadas, sublinhada pelo sarcasmo de Jarbas, temperada pela ponderação de Bete, e complementada pela visão de Daniel, mais viajado e experiente, os leitores são transpostos rapidamente para Itaipá, minúscula cidadezinha do Sul de Minas, "situada em algum lugar entre Ouro Fino e Borda da Mata", onde os aguarda Bia, aparentemente uma avózinha tradicional, mas na verdade uma mulher sábia, que já em sua juventude dera prova de independência e firmeza. Com ela, Bastiana, quituteira e fiel acompanhante, mas também guardiã de segredos só penetráveis para os que mereçam conhecê-los, e que entretém os jovens com seus "causos" de assombração. Também ficam conhecendo Oduvaldo, um investigador de polícia meio afilhado ou protegido de Dona Bia, que também tem o seu segredo pessoal, e que anda às voltas com o sequestro de um garoto. E em seus passeios pelos arredores, os jovens acabam chegando a um velho casarão abandonado, situado na periferia da cidade. O que haverá lá dentro? E as portas e janelas estão pregadas com tábuas para ninguém entrar, ou para não sair?
Certa ambiguidade no gênero do sobrenatural é a marca da narrativa bem sucedida. Os bons contadores -ou contadoras, pois que a nossa tradição popular, e de modo especial a rural, com frequência outorga à mulher, principalmente a idosa, o papel de depositária da memória coletiva, de quem depende a conservação e a divulgação da cultura da comunidade por via oral - demonstram fina argúcia em terminar os seus contos deixando uma ponta de dúvida. E quando o ouvinte, inquieto, insiste, querendo saber se o que ouviu é verdade, se a contadora viu mesmo, se o fantasma existia, respondem: "Quem me contou foi pessoa que não mente... Sei não, tem gente que acredita mesmo..." Fica assim a peninha pairando no ar, para que o ouvinte não se sinta completamente satisfeito, como quem se levanta da mesa farto, e sim com um pouquinho de fome, para que mais tarde, talvez na calada da noite, quando a casa se povoa de leves ruídos estranhos, lhe surja a dúvida, alimentada pela treva: "E se...?" Os leitores habituados a ler entre as linhas perceberão que os causos não são inocentes, nem são apenas sobre fantasmas, e que os jovens, sob uma aparência descuidada e irreverente, têm antenas afinadas, que lhes permitem entender a sociedade em que vivem. Apesar da sua sofisticação urbana, e no caso de Daniel, internacional, apreciam e necessitam o carinho e compreensão que Vó Bia lhes oferece, e a visão de mundo que encontram no que lhes conta Bastiana. De certa maneira, Itaipá, virtualmente à margem do mundo, é um anacronismo desejável. Através da narrativa percebe-se uma fina linha de crítica social, reflexo de uma perspectiva politicamente incorreta para alguns, liberadora para outros. E qual delas é a verdadeira? Se perguntássemos a Bastiana, talvez respondesse, sábia mineira velha: "Tem quem diz que é uma, e tem quem diz que é a outra." "Mas e você, Bastiana, o que você acha?" "Uai, eu também, uai." Por isso, A Dama do Casarão é um romance que nos entretém e anima a continuar a ler, até descobrir a resposta -supondo que exista.
Eliane de Alcântara Teixeira, doutora em letras pela USP, docente do Mestrado Multidisciplinar da Universidade São Marcos, Visiting Professor no Middlebury College, VT, EUA e autora do livro Almeida Faria e a revisão do mito sebástico. |
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Atualizado em ( 06-Out-2010 ) |
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