Carta psicografada de um candidato à fama |
Escrito por Eduardo Fahl | |
23-Nov-2010 | |
Caros Viventes, Por aqui vai tudo bem. Enfrentei tenso interrogatório do pessoal da portaria. Duro, porém sem torturas. Talvez pela ineficiência do método na alma, diferentemente do que ocorre em nossas delegacias sobre os corpos detentos. Matei-me! De pronome e forma oblíqua, sinuosa. E por conta desses caminhos tortos, resolvi escrever e explicar as circunstâncias. Como tudo que é mal planejado, a missiva anterior foi embora com a jaqueta, única peça digna de meu vestuário, objeto de cobiça dos aspirantes à dignidade e ao calor nas horas dormidas em ruas da cidade. Ocorre que nasci nada. Em certidão não tenho pai. Em vida nem tive mãe, nem tive família. Cresci nas ruas com fome, desalento e o único esporte era o boxe onde servi de saco de pancadas. A necessidade me fez o ofício. De lixo entendia bem. E foi nessas oportunidades da vida que um dia passei a viver de reciclagem. Vejam bem: o lixo dos outros - o seu, inclusive - era minha riqueza. Depois progredi para gari. Se sei ler, escrever e entender? Sim, sim, sim. As ruas abrigam espécies inimagináveis. Filósofos, professores, putas falidas ou arrependidas. Engenheiros corneados, metalúrgicos amputados, gente à procura de Deus e da salvação. Meninos abandonados e outros que encontraram seu lugar no mundo. No lixo tem livros e nas cabeças das ruas uma certa sapiência inacessível a quem vem de fora. "Tô dentro", diria eu qual mano das ruas. Mas histórias são longas e ninguém tem paciência. Rápido, rápido ao que interessa. A turma aqui é vigilante e as almas formam fila nessa lan house do além. O certo é que para todos eu era o cara desdentado correndo atrás de um caminhão. A roupa abóbora deixava ainda mais assustador esse personagem de halloween. Até que descobri, com um desses viventes da rua, que existe dia e hora para virar notícia. Quer mostrar os peitinhos na revista de fofoca? Pegue praia no Rio e exiba os distintos na quinta-feira pela manhã. Dá tempo de fechar a revista. Pronunciamentos importantes para donas de casa? As dez da matina se quiser algo gravado. Estourar boca de fumo? Fácil, fácil. Faça por volta das 15 horas e avise ao Datena com antecedência. Imagens ao vivo e quinze minutos de fama. Pois escolhi a hora para dar fim a essa única vidinha que Deus me deu. Meio-dia em frente à biblioteca onde a bibliotecária, sempre atenta, de cabelos lindos e com créditos no celular pudesse ver e avisar aos jornalistas. Calculei direitinho. Tiro na cabeça ao meio-dia, bibliotecária olhando pela janela 5 segundos depois, rápida ligação para a imprensa, moto link chegando por volta de 12:10 horas. Entrada ao vivo por volta de 12:30. Senhoras desesperadas em meio ao almoço comeriam minha carne e minha alma. Entraria em suas vidas de forma repugnante. O sangue da carne mal passada, crua e inerte no asfalto. Crianças tiradas da sala para não verem a fragilidade, o nojo das entranhas humanas. Ainda proporcionaria a alegria de repórteres, fotógrafos e cinegrafistas ávidos por descreverem o que eu tinha na cabeça. Furou tudo! A bibliotecária lia Sagarana e não sou (era) páreo para isso. Quando notou o movimento na rua descobriu que estava sem créditos. Em seus arquivos não havia um único contato com a imprensa. O pior: o danado do Josenildo, lá do IML, resolveu só almoçar depois do recolhimento de meu cadáver. Tudo rápido, sem exposição, sem fama, com tempo apenas para o furto da jaqueta e da missiva. Tanto que aqui cheguei e sequer sabiam meu nome. Continuo um nada no além. Abraços. Eduardo Fahl é fotógrafo. |
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Atualizado em ( 23-Nov-2010 ) |
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