Carta psicografada de um ateu |
Escrito por Eduardo Fahl | |
21-Dez-2010 | |
Queridos amigos, Não acreditei no que vi. Onde estavam com a cabeça? Não cumpriram nada do combinado e fiquei pensando se tinham ido ao velório certo. Até eu tinha dúvidas de estar em meu velório! Tudo bem, camarada, que você sempre falou de forma clara, fez curso de oratória etc, mas aquele discurso sobre minhas virtudes... nada a ver. Você sempre foi meu confidente, quase um irmão, e sabe bem que eu não tinha virtudes. Nem eu tremi na hora final. E vem você querendo salvar minha alma e reputação. Sabendo que não acredito na existência da primeira e a segunda sempre me pertenceu. Levei-a ao túmulo comigo. Vejo entrar um padre paramentado para encomendar minha alma. Antes, mandassem por encomenda expressa, tipo Sedex. Duas carpideiras chorosas que nunca vi, carregando um arranjo de flores redondo - tão grande - que se fosse ateado fogo daria para passar um motociclista de circo entre as chamas. Tínhamos combinado umas cervejas, cachaça, um baseadinho entre túmulos. No lugar disso só velas, incensos e cruzes. Aquele pessoal todo choroso, lamentando o homem bom que se ia. Só minha pequena não conseguia esconder o indisfarçável sorriso no canto da boca. Nenhuma das minhas amigas se dignou a abaixar-se no caixão gritando "Por que não dei pra ele enquanto estava vivo!". Coisa medonha. Depois o apogeu. A cantoria combinada mudou radicalmente. Onde estava o Paulinho da Viola, o Chico, Clara Nunes. Duas amigas cantoras, um percussionista, violeiros, um violonista formado na ULM, todo mundo lá. O que ouço? A união de católicos e evangélicos cantando "Entra na minha casa, entra na minha vida, mexe com minha estrutura, cura todas as feridas, me ensina a ter santidaaaade blá blá blá". Santidade onde? Vocês me levaram ou me acompanharam nos lugares mais sórdidos. Gomorras que só os verdadeiros amigos compartilham. E essa história de aprender a ter santidade é confusa. A igreja sempre condenou cientistas por tentarem ser Deus. Dançaram Copérnico, Galileu, médicos que fizeram o aborto de uma menina de nove anos. Lembram do bebê de proveta? Pois querer ser Deus na ciência não pode e na santidade é obrigação? Qualé! Nasci nesse mundo para pecar. Vocês fizeram parte desse aprendizado, compartilharam isso comigo. Quantas farras e desandos, sempre com o cuidado de não acabar com o fígado de vez, ou pegar uma gonorréia. Pecar era encontrar um lugar no mundo, longe das amarras, na vivência estreita daquilo que compartilhamos apenas com quem gostamos. Vivíamos os pecados deliciosamente, como se comêssemos uma maçã nus, em campo aberto, sem nos importamos com o vento e os olhares que nos atingiam. Mas o pior de tudo foi o pão-durismo de vocês. Onde já se viu comprar uma lápide pré-fabricada? Não leram o que estava escrito? Vejo esse corpo baixar e a frase estampando meu frontispício "Aqui jaz um servo de Deus". Porra! Paciência tem limites. Agora é uma ordem. Arrumem um pedaço de tábua dessas que ficam sobrando em caçambas no meio da rua. Serrem um pedaço e escrevam com giz de cera, se precisar. Botem em letras grandes em minha nova lápide: PREFERIA ANTES! Pronto. Essa é a melhor homenagem. Grande abraço para vocês, seus sacanas. Em tempo: Quem disse que existe vida após a morte, não sabe o que é viver. Isso aqui é um tédio! Eduardo Fahl é fotógrafo. |
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