Limpar vidraças |
Escrito por Jamil Alves | |
08-Out-2014 | |
Cheguei para trabalhar no 23º. andar. Foi ver aqueles caras e eu comecei a tremer. Meu Deus, para que serve um emprego desses? Eram dois caras pendurados na janela, do lado de fora, limpando as vidraças do prédio, que é todo espelhado na parte exterior. Senti um frio no estômago, um susto, uma boca seca e uma tremedeira. Meu Deus, como conseguem fazer um negócio desses? Tomei um gole de café para me acalmar, mas o café ficou amargo na boca. Fiquei perturbado por quase uma hora, meio trêmulo, inconformado com a coragem daqueles caras. Tomei água para tirar o gosto ruim do café, mas engasguei aqueles engasgos de ter que levantar os braços para passar.Depois que eles foram desaparecendo das minhas vistas, à medida que iam descendo para os outros andares (pelo lado de fora, credo!), tive a infeliz ideia de colocar a cara perto da janela para ver onde estavam. Afinal, eu só conseguia pensar que estariam a salvo quando chegassem ao térreo e se desamarrassem daquela parafernália toda que os mantinha pendurados. E ver aqueles caras pelo cocuruto me deixou ainda mais desesperado. Fiquei pensando "caramba, eu sou um puta bundão". Justo eu, que me acho foda, que saí de casa com 20 anos, que trabalhava em banco, que tinha 21 anos quando terminei minha primeira faculdade, tava quase me cagando de medo. Depois que o piti passou, fui até o térreo comprar um café descente, porque o do meu andar é frio, não mata a vontade de cafeína. Lá pelas tantas, vejo os caras da janela passando na minha frente e um deles sentou do meu lado na praça de alimentação. O outro, acho que foi no banheiro. Comecei a olhar para o cara como se ele fosse um semideus. Ou melhor, oscilava entre achar o rapaz um semideus ou um retardado. Ninguém normal poderia se pendurar nas alturas do jeito que ele fez. Reparei que ele tinha uma mochilona e um monte de metal nos equipamentos, tipo uns ganchos. Ele não se sentou muito longe de mim. Mania de jornalista, logo acabei fazendo uma pergunta: - Poxa, você não tem medo? - De quê? - Eu vi você limpando as vidraças desde lá de cima. - Não, normal. - Nossa, eu passei mal só de olhar você lá em cima. - É, eu percebi. - É mesmo? Nem percebi que você me viu. - É, mas todo mundo faz uma cara engraçada quando vê a gente limpando o vidro. - E faz tempo que você trabalha nas alturas? - Um ano e pouco. Eu tinha um irmão que também trampava com isso, mas mataram ele lá perto de casa tem dois meses. - Poxa... Que chato, meus sentimentos. - E você não tem medo de trabalhar num lugar tão alto? - Ah, no começo tinha medo, sim, mas depois, acostumei. Acostuma. É, medo eu vou sentir agora. Vou demorar 2 horas para chegar em casa. O ônibus essa hora deve estar lotado, zuado. Até a minha quebrada é um puta rolê. - O outro limpador saiu do banheiro. - Falô, falô!, disse o rapaz das "quebrada". Gente boa o cara. - Falô, té mais. E eu que pensei que perigoso fosse o trabalho dele, mas perigoso mesmo é viver numa cidade em que a barbárie se instalou... E eu com meu medinho de cagonildo fiquei com cara de tacho.
Ilustração de Fernando Valverde |
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Atualizado em ( 08-Out-2014 ) |
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