Falta A, sobra O |
Escrito por Jamil Alves | |
29-Out-2014 | |
Ruy Castro* avisou em setembro que o "a" estava em perigo. Tão cioso da língua portuguesa, não percebeu que quando muita gente diz "lava jato" quer dizer "lava a jato"; um "lava a jato" é, em geral, um lugar onde automóveis são lavados de forma muito rápida.
Depois do alerta do Ruy, comecei a prestar atenção nesse azinho que vira e mexe se esconde nos anúncios e nas conversas mais corriqueiras. Pensando ainda no lava a jato, comecei a prestar atenção às placas. Perto de casa, no único em que o "a" estava presente, colocaram uma crase: Lava à Jato. Chorei. Fui para casa, "googuei" e encontrei: "Como montar um lava jato", "Como funciona um lava jato nos Estados Unidos", "Entenda a operação Lava Jato". Nenhum deles falava de jato, nem de helicóptero, nem de teco-teco. Eram todos denotativa ou conotativamente a respeito de "Lava a Jato". Tudo bem. "Lava jato" eu nunca conheci, mesmo. Só fico imaginando o tamanho do balde e da escada do cabra que vai lavar um bichão trambolhudo desses.Num outro dia, liguei do trabalho para casa para saber do Miguel, meu filhote. Quis saber da babá como ele estava, o que tinha acontecido. A certa altura da conversa, ela me interrompeu: - Seu Jamil, vou desligar que o Miguel está cheirando cocô! Caramba, que menino mais porquinho. Tão novinho e já fazendo uma porcaria dessas? Como ele conseguiu pegar uma fralda suja? Retomo a ligação e descubro que ele estava na verdade apenas "cheirando a cocô", algo totalmente normal para um bebê de três meses. Ainda mais depois de ter tomado um belo leitinho notetê. Porém, nesse caso, era só pum. Depois do aviso do Ruy, nunca mais tive sossego. Comecei a reparar no que as pessoas dizem e na forma cruel com que destratam a pobre letrinha inicial do alfabeto. Percebi que uns contraparentes meus, do interior do Rio de Janeiro, comem todos os "as" dos imponentes verbos transitivos indiretos: - Pede o João para vir aqui. Credo, preciso de sossego. Esse negócio de ficar reparando no que os outros dizem ou escrevem é enlouquecedor. Só jornalista mesmo para entrar numa fria dessas. Basta ligar a TV, então, para relaxar um pouco, buscar informação, entretenimento, sei lá. Entre uma desgraça e outra do noticiário, começam a exibir uma retrospectiva da tragédia da chuvarada na região serrana do Rio em 2011. Uma senhora desesperada grita para a repórter: - Diz o prefeito para ajudar! Todo o meu dó da senhorinha se voltou novamente para a pobre letrinha "a". Chega de TV, melhor a internet. Ouvir uma boa música ou ler um bom texto sempre cai bem. No primeiro clique, "Giovanna Antonelli responde seguidora que a chamou de mal-educada"**. Ué, mas quem responde não responde alguma coisa a alguém? Cadê o "a", o gato comeu? O Ruy, sem saber, me rogou uma praga, me jogou uma maldição! Giovanna não teria respondido a seguidora, à seguidora, a seguidor, a seguidores, aos seguidores, às seguidoras, a um seguidor? Pirei. Ficar esperando esse "a" que nunca vem é uma odisseia inglória. Eita vogalzinha doente, está de cama a coitadinha. Ainda bem que a minha amiga Denise, de ascendência mineira, sempre tem uma palavra de consolo para mim, desde os tempos do curso de Letras. - Jamil, desencana. Na cidadezinha da minha mãe todo mundo diz "Deus o livre", seja quem for a pessoa. Se é um rogo para o Pedro, Deus o livre!, se é para a Fernanda, Deus o livre! Se é para a Fernanda e a irmã dela, Deus o livre! Acho até que eles devem estar dizendo outra coisa, algo tipo "Deuso livre". E nós, com tanta letra e tanto verbo, é que não entendemos! Prostrei. Além de faltar "a" sobra "o", então? Resolvi deixar a letra "a" para lá. Fazer o quê, azar dela. Se não a usam, problema dela. Afinal, se todo mundo vai "no" cinema e chega "em" São Paulo é porque ninguém vai com a cara dessa letra, toda bestona só porque é a primeira, na frente das outras vinte e cinco bestalhonas. Esqueci mesmo o "a". Comecei a ler uns trabalhos que me entregaram dia desses para corrigir. Trabalho de professor, não de jornalista. Meninas bonitinhas, quase secretárias, caprichosas que são. Nunca falta no trabalho uma capa. Já no segundo ou terceiro: Profo. Jamil Alves. Meus Deus! O que esse ozinho está fazendo no final da abreviação? Se eu já nem dei conta da falta de "a", por que vou ter de dar conta dessa sobra de "o"? Engenheiro tem ozinho no final. Padre, que termina com e, um ezinho. Padre, Pe. Mas eu não, eu não tenho nada, eu sou professor, não sou "professoro"; nem "jornalisto". Não me venham impor um "o" goela abaixo! Passei o resto da tarde em surto, escrevendo bilhetinhos alucinados nos trabalhos das alunas: "não sou professoro", "não sou professoro", "não sou professoro". Só faltei babar. Melhor eu parar de tentar resolver os problemas dos outros. O "a" e o "o" que se danem. Só falta alguma feminista, dessas que gostam de queimar sutiãs, dizer que falta "a" e sobra "o" porque todos nós somos uma cambada de machistas. Parei. E se existir mesmo essa coisa de reencarnação, na próxima quero ser..."ingleso". Por enquanto, meu Rivotril, please.
Ilustração de Fernando Valverde. * http://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2014/09/1515495-o-a-em-perigo.shtml
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