Feliz Finados |
Escrito por Jamil Alves | |
05-Nov-2014 | |
Todos os anos, passado o dia de finados, fico me perguntando se ele tem algum sentido. Claro que tem. Mas, para mim especificamente, não sei. Sempre o achei um feriado tristonho e mórbido.
Penso também que o que deve realmente ser celebrado são as trivialidades da vida, do cotidiano; a nossa quota diária de rotina e mesmice. Façamos algo por aqueles que amamos enquanto estão vivos. Quando se perde alguém muito próximo, nossos valores mudam. Fica um vazio incômodo, que nos recorda o quão pequenos e limitados somos. Mas temos de tentar preenchê-lo com outras coisas. Nem que sejam lembranças. Uma muito boa que tenho, e talvez a mais antiga, é a de um dia em que fiquei ansioso porque era dezembro e meu pai tinha-me dito que me traria um presente. Lembro a felicidade que senti quando o vi aparecer na esquina da nossa rua. Tenho clara a lembrança daquele homem então jovem, de roupa clara, com uma caixa retangular gigantesca nas mãos.O brinquedo que ganhei naquele Natal era a Fuga Maluca, uma pista azul de montar, com dois carrinhos: um vermelho e favorito, do bandido, e outro preto e branco, da polícia. Uma vez montada, a pista tinha dois níveis, e os carrinhos podiam subir e descer como se estivessem nos trevos da Marginal Tietê. A brincadeira ficava mais animada com os desvios plásticos que as pistas tinham, e eram esses desvios que permitiam que o bandido fugisse da polícia. Da lembrança mais recente, recordo que era uma sexta-feira. Naquele final de tarde, resolvi ligar para ele. Nós não costumávamos ter muito assunto, ele era muito caladão e não gostava de falar de si. Mas, naquela sexta-feira, tudo foi diferente. Falamo-nos ao telefone por quase uma hora. Era seu aniversário. Todos os anos nos falávamos nessa data especial. Do meu aniversário, praticamente um mês antes do seu, ele quase sempre se esquecia, avoado que era. Eu ficava ora triste, ora bravo. Com o tempo, acabei me acostumando. Ouvi com atenção seus projetos e planos. Suas viagens. Seu trabalho, seu carro, sua namorada, suas pirraças com a minha mãe, seus comentários estapafúrdios sobre as trivialidades do cotidiano. Foi uma conversa afetuosa. Terminamos o papo com meus votos de feliz aniversário e de que tivesse muitos anos de vida, sem ter a menor ideia de que seria a última vez que eu teria a chance de lhe dizer "feliz aniversário". Oito dias depois, a primeira internação. Repentina, chocante, sorrateira. Alguns dias mais e um terrível diagnóstico. Começava um calvário de tratamentos dolorosos, dos quais fui testemunha. Não sei se fui bom ator, mas tentei representar, passar a ele a confiança que, no fundo, nem eu mesmo tinha. Hoje, neste primeiro finados sem meu pai, algo dentro de mim está vazio. Já sonhei com ele algumas vezes, mas os sonhos não preenchem o vazio que vem depois de acordar. Será que o mundo onírico é uma espécie de indulto ou uma sala de visitas de outro plano? Esteja onde estiver, parabéns. Onde você está não há telefone, mas tenho certeza de que pode ouvir o que eu gostaria de lhe dizer: "feliz aniversário, eu te amo"; e um insólito "feliz finados".
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Atualizado em ( 05-Nov-2014 ) |
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