Quatro e pouco da tarde. Sol inclemente no vidro espelhado do 23º andar enquanto espero um dos elevadores. Mal consigo abrir os olhos, muita claridade. Um minuto depois, sai de dentro do elevador da ponta direita um rapaz de uns 35 anos, calvo, estatura mediana; sorri para mim e diz "oi, seu Jamil, tudo bem?".
Eu lhe sorrio e lhe retribuo o cumprimento mais com a cabeça que com palavras, mas sem deixar de ser cortês. Entro no elevador, "primeiro subsolo, por favor". Prontamente, a ascensorista aperta o botão rumo ao andar desejado, vinte e seis abaixo de onde estávamos.
- Seu Jamil, o senhor viu? Esse rapaz que desceu estava me falando que está indignado com as novelas ultimamente. Depois daquela do Félix, ele disse que não sabe como explicar para o filho de três anos dois homens se beijando.
Perdido em meus pensamentos de mil afazeres, minha sinapse demorou pouco mais que o habitual. Esse calor que está fazendo é de atordoar qualquer um.
- Poxa, que pena que ele desceu. Eu gostaria de perguntar para ele como vai explicar para o filho sobre uma cena que vi nessa mesma novela: uma mulher amarrando um homem na cama e desferindo mais de dez facadas nele.
Silêncio. Os outros passageiros do elevador pararam de falar e se entreolharam, e a sinapse da ascensorista simpática tardou ainda mais que a minha.
- Poxa, eu não tinha pensado nisso, professor.
- Pois é, eu disse a ela.
- Eu queria ter perguntado a ele como ele explicaria as infidelidades, tramoias e vinganças, dessa e de outras histórias, seja de novela ou de qualquer outro tipo de ficção ou realidade. Como será que ele explicou para o filho de três anos um tio que joga a sobrinha numa caçamba de lixo? Como será que explicou a médica que deixou a paciente morrer porque era apaixonada pelo marido dela?
A carinha simpática da moça foi ficando com certo ar inquieto, quase um arrependimento por ter tocado no assunto comigo.
- Poxa, você assistia mesmo à novela, hein? Eu também gostava...
- Pois é, eu via, sim. Mas, apesar de tudo o que eu disse aqui, escuta, esse seu amigo deixava o filho de três anos assistir à novela? Novela das nove não é coisa para criança!
- É, seu Jamil, você tem razão...
Primeiro subsolo, porta aberta, tchau, até amanhã. Fala isso para ele quando o encontrar de novo.
- Tá bom, seu Jamil, pode deixar. Vai com Deus, até a semana que vem.
Pego meu carro e vou-me embora. Não para Passárgada, infelizmente, mas para o infernal trânsito paulistano. No espelho retrovisor, o mesmo sol lá de cima do 23º andar continua inclemente. Meu desconforto intelectual tem algo de físico também. Imóvel no semáforo, quase na Avenida Paulista, fico pensando na lógica das coisas, da vida, das pessoas. Mas é infrutífero. Não sou capaz de chegar a qualquer conclusão. Não defendo polêmicas, não levanto bandeiras. Só me aborreço e lamento. Uma sociedade que acha violência mais natural que beijos está enferma. Muito enferma. E que Deus nos mande um pouco de lucidez: menos sístoles, mais sinapses.
Ilustração de Fernando Valverde.
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