Um ser de alegre e canina figura |
Escrito por Jamil Alves | |
03-Dez-2014 | |
Andados, de ânimo leve e passo cansado, os quatro quarteirões do bairro antigo, ainda com marcas de quando era um polo industrial da cidade - galpões ativos, outros abandonados; todos misturados hoje às casas antigas, trambolhos de cimento e tijolo. Bares, pequenos comércios e vendinhas disputam espaço entre as casas, os galpões e os vigorosos supermercados e comércios mais sofisticados.
Eis-me do outro lado da rua, a ponto de atravessar a faixa de pedestres. No capacho da porta, um cão jovem, bonito; vira-latas como se dizia antigamente - hoje SRD, sem raça definida. É um cãozinho alegre; dentição clara que denota sua pouca idade. É um vagabundo sem lar, mas que tem a seu favor a alegria da juventude. Seu raciocínio canino parece amenizar-lhe as dores do abandono. Eu não faço nenhum gesto, não digo nada. Cruzo a faixa com minha cachorra na coleira. Não queria ter interrompido o sono daquele animal. Acho que, assim como acontece conosco, os cães também devem aproveitar o sono para esquecer as lembranças que não deveriam ser lembradas. Já que lhe faltavam tantas coisas, que dormisse pelo menos. Não deve ser fácil a vida de um cão sem dono.Nenê, minha alva cachorra, com sua alegria franca e pintinhas pretas, tratou de entrar no petshop sem ser interrompida; no entanto, o cão do capacho da porta cheirou-lhe o rabo. Em linguagem de cachorro, isso deve ter significado uma saudação e um galanteio. Soube naquela mesma tarde que aquele pobre cachorro tinha recebido guarida naquele petshop. Achei simpática a ideia de um estabelecimento como aquele ter uma mascote adotiva, um cão de guarda. Para mim, fazia sentido: ainda bem que mando cuidar da minha cachorra num lugar onde se gosta de animais. Conheci e conheço petshops aos que tal lógica não se aplica. Este mundo está virado. Passei agradáveis tardes com aquele cão feliz, aquele cão alheio à sua vira-latice. Algumas vezes, fui até lá só para ter com ele. Passei momentos agradáveis observando sua simplicidade. Assim passei várias tardes; porém, no tempo triste em que vivemos, alegria incomoda. Não tardou para as donas dos cãezinhos esnobes de frufrus pensarem que aquele cão, jovem e vigoroso, representava uma ameaça. Em poucas semanas, tivemos de nos separar. Sempre sentirei falta do meu amigo vivaz e sem destino. Ele não era apenas mais uma criatura neste mundo de criaturas inumeráveis. Esteve ao meu alcance, mas eu nada fiz por ele além de amá-lo. No pet, arrumaram uma casa para ele. Meu amigo arfante e peralta seria a alegria de um garoto de nove anos. Então, deixei-o partir, altivo, digno e alegre que era. Foi-se embora o cão, morar nos arrabaldes da cidade e, graças a sua vivacidade curiosa, que o fazia enfiar o focinho úmido em qualquer buraco, depois de poucos dias morreu picado por um escorpião que encontrou numa reentrância da parede. Guardarei até o fim da vida seu olhar no meu coração. Neste complexo mundo de regras urbanas e frias dos homens e dos apartamentos, sentirei a infelicidade de não ter podido socorrê-lo e por não ter sequer suposto ou previsto seu fim, tão bobo e triste. Pensei depois que todos nós somos ou seremos, um dia, esse cão vira-latas no capacho da porta. E há o dono do lugar, os clientes, a escadaria que descemos e a picada do escorpião.
Foto: Jamil Alves. |
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