Uma das maiores preocupações daqueles tempos, além de escapar do serviço militar e de entender o cruzeiro real, moeda que representava o início do plano FHC, era encontrar uma forma de dar conta de tantos afazeres. São Paulo era um pouco diferente, mas já era caótica. Desde que me entendo por gente, sempre foi.
Trabalhar e morar numa região da cidade e estudar todas as noites noutra representava um desgaste enorme. Metrô cheio na hora de maior movimento do dia, o da volta para casa (ou da ida para a universidade). A linha-amarela não era então nem sequer um projeto, e do Butantã a qualquer estação do metrô o trajeto era longo.
Na charmosa Praça da República, que no meio dos anos noventa andava bem degradada, a espera pelo 702-U, que vinha do Brás (e não do parque Dom Pedro, como hoje), era cansativa. Não digo exaustiva porque a exaustão vinha mesmo dentro do ônibus. Sempre cheio, apertadíssimo; repleto de cotovelos, de pisões e de histórias.
Nas poucas vezes em que se podia ir sentado, quanta sorte! Era quase como ganhar na loteria. Nessas poucas vezes, era fácil fazer amigos. Paula, uma paraibana risonha e muito agasalhada para os padrões paulistanos, foi uma dessas amizades. Tive com ela momentos de gargalhadas garantidas.
De que ríamos? De nós mesmos! Da pobreza, do busão apertado, do frio, do calor, da chuva, do trânsito, do "hoje vamos perder a prova". Certa vez rimos tanto que nos distraímos e passamos do ponto certo de descer.
Alessandra, magrinha, aparelho ortodôntico e algum grau de dislexia, chegou a confundir num texto um kibutz em Israel com um iglu na Índia (eu sei que na Índia não há iglus). Um dia chegou à faculdade totalmente fora de si, indignada porque um homem havia lhe mostrado "as partes" no 702-U. Tarado, tarado, sai daqui, sai daqui! Para, motorista, eu vou descer!
Vez ou outra, escapávamos juntos, eu e Mário, de alguma aula mais indigesta. Mário, não aquele do infame trocadilho, mas sim o meu amigo descolado, entendia muito de bares. No dia em que ele se referiu a um boteco da faculdade como "aquele lugar infecto" eu quase caí da cadeira. Se nem o Mário gostava daquele estabelecimento, por aí já se podia imaginar o naipe do ambiente.
Quando decidíamos que o cansaço ou a chatice de alguma aula estava além das nossas forças, os destinos mais prováveis estavam entre a região da Paulista-Consolação e a República.
Na maioria dos bares, ouvia-se uma trilha sonora morna e com uns rugidos. Os anos oitenta com sua liberdade pós-ditadura já haviam terminado e o pessoal dos noventa ainda não sabia o que pôr no lugar em termos de música. Dava a impressão de que as canções eram tocadas apenas para quebrar o silêncio. Já repararam que o silêncio incomoda a maioria das pessoas?
Num desses bares, Mário recebeu uma cartinha de paquera bastante original, sem a linguagem piegas que esse tipo de escrito costuma ter: você é sem dúvida a pessoa mais interessante deste lugar. No entanto, a autora ou autor da carta não se apresentou, Mário ficou desanimado e foi embora. Não ia ficar procurando ninguém; era muito míope e estava sem óculos na ocasião.
Mário era franzino e cabeludo; por isso, quase sempre os vendedores de flores que o viam de costas no balcão lhe ofereciam ramalhetes, pensando que fosse uma garota. O equívoco não o incomodava e até nos divertia.
Numa de nossas cabuladas, vivemos uma situação que ficou conhecida entre os amigos como "o dia da pedra". Eu estava sentado ao lado da janela, com Mário no banco ao lado, no corredor. Era dia de jogo clássico, um Corinthians e Palmeiras. No ponto, o motorista do nosso ônibus acelerou em vez de parar para os torcedores, que eram muitos e pareciam exaltados.
Eu, então, me desliguei da conversa com os amigos e passei a observar a movimentação externa. Vi um rapaz de uns trinta anos se abaixar e depois se erguer com a mão direita acima da cabeça, como se fosse arremessar algo contra o ônibus. De repente, meus amigos me perderam de vista por alguns instantes.
Ei, o que aconteceu? - A pedra!
Ãh? O que foi? - A pedra!
Esse cara está doido. Do que você está falando? - A pedra!
Tudo o que eu conseguia dizer era "A pedra!". Estava apavorado. Imaginei que o rapaz iria jogar uma pedra contra a vidraça do ônibus bem na direção em que eu estava. Eu sumi para os colegas porque abaixei o tronco brusca e medrosamente, com as mãos protegendo a cabeça, como quem esperava uma hecatombe.
Passado o susto, foi hilário. "A pedra!" se tornou a frase a ser dita quando alguém da turma queria dizer que algo era falso, equivocado, enganoso.
Com Mário, vi e ouvi muita coisa. Com ele, Alessandra, Paula e tantos outros. Aprendi a respeito de Eça de Queirós e suas descrições intermináveis; li Saussure e Chomsky na Linguística. Vieram as dores da vida adulta: pagar contas, paquerar e tomar foras.
Vi o centro degradado, depois revitalizado. Assaltantes, mendigos, drogados, meretrizes, floristas; gente normal e gente esquisita. Tarados assediando meninas nos ônibus. E eu estava lá.
Às vezes tenho saudades, às vezes não tenho saudade de nada, mas eu estava lá. Não ficou nada de bom por fazer. E ainda bem que eu estava lá. A vida se vive in loco. A vida é perto.
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