O fim do mundo |
Escrito por Jamil Alves | |
08-Abr-2015 | |
Quando ouvi falar do fim do mundo pela primeira vez, ele não era para mim mais que minha família, meu quintal com muitos pintinhos, cachorros e porquinhos-da-Índia, minha escola e meu Atari. Lembro-me, no entanto, de umas vizinhas desgrenhadas que acreditavam piamente que o mundo acabaria naquele fevereiro, falando com contundência e certo desespero a respeito de um cometa que passeava pelo céu de tempos em tempos.
Para mim, toda aquela conversa torta não era comigo. A tevê também falava a respeito de um cometa, mas sem o tom apocalíptico das lamúrias das vizinhas. Acredito ter sido essa a primeira vez em que a Astronomia me pareceu mais interessante que meu carrinho de rolimã ou que as goiabas do quintal da Dona Fátima. O cometa passou, a tevê o mostrou e o rádio o narrou, mas o mundo não acabou. Os que choravam enxugaram seus olhos, e aqueles que não acreditavam que o mundo acabaria ganharam bons argumentos para debochar dos crédulos. Logo veio uma Copa do Mundo, no mesmo ano, e todos se esqueceram do cometa, do apocalipse e de qualquer outra coisa realmente relevante.Passou-se muito tempo e, inevitavelmente, cresci e aprendi muitas coisas. Estudei, trabalhei, comecei a pagar imposto de renda. Namorei, apaixonei-me, tive filhos. Escrevi livros e tive esperança vã na política deste país e na boa-fé dos homens públicos. Comprei carro e me matriculei na academia. Mas, apesar de tudo isso, acabei não descobrindo o real sentido do mundo, talvez porque ele se resuma apenas à visão peculiar de cada um, à parte diminuta da existência que cada um de nós consegue apreender como realidade e verdade. O mundo é fugidio, e quanto mais se tenta entendê-lo, menos compreensível ele se torna. Vi, neste tempo todo que me separa da memória do dia em que contemplei o cometa do fim do mundo, impeachments de presidentes, demagogia e larápios roubando estatais. Ou melhor, desviando verba: quem vive sem os bons eufemismos nesta vida? Durante todo este tempo, houve mais coisas saindo dos eixos que entrando neles. Os planetas continuam cumprindo as órbitas que lhes competem, mas apequenaram Plutão, que já não é planeta, virou estrela; o que não é nenhum demérito, pois as estrelas são muito inspiradoras e mais cheias de poesia. E se até os planetas são rebaixados em suas classificações, o que dizer dos pobres homens, que por vezes nos arrogamos posições que não temos? "O tempo é cruel" e "o tempo cura tudo" são clichês muito populares, e eu acredito mais no primeiro. Ajudado pela força da gravidade, o tempo e sua crueldade derrubam tudo: peitos, traseiros, o músculo do tchauzinho e as vaidades. Por outro lado, tempo passou e não curou tudo. A escravidão foi abolida, mas até hoje todo camburão tem em si um pouco de navio negreiro, assim como nunca falta um abelhudo a evocar em vão o nome de Deus para julgar o deleite e os prazeres alheios. Igualdade? Só comprando. Dignidade? Tem, mas acabou. Não creio poder ver novamente o tal cometa, que deve passar por aqui de novo só em julho de 2061, porém gostaria que houvesse cometas a riscar nossos céus mais amiúde. Se eu o vir novamente, certamente já terão se esvaído em minha memória sua primeira visita, que presenciei com olhos de criança, e a goiabeira da Dona Fátima, a vizinha da casa dois. E meu palpite é que ainda não teremos descoberto o real sentido do mundo.
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Atualizado em ( 09-Abr-2015 ) |
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