Sequestraram meu e-mail |
Escrito por Jamil Alves | |
13-Mai-2015 | |
"Senhor, seu e-mail foi sequestrado, por isso não funciona", disse-me a atendente do provedor após um irritante "nós vamos estar verificando e vamos estar entrando em contato". Tive vontade de lhe dizer "eu vou estar mandando você e a sua empresa à...", mas minha finesse me impediu.
Foi-me informado "pela mesma" (outra expressão vazia e pretensamente anafórica, muito usada por quem pensa que está falando certo quando, na verdade, está fazendo Camões e Drummond se revirarem nos túmulos) que não era um simples problema técnico, que se tratava de um sequestro mesmo porque esses rackers (anglicismo chique e moderno para ladrão) que invadem os e-mails das pessoas costumam entrar em contato e pedir dinheiro para liberar novamente o acesso ao verdadeiro dono. É o que fariam comigo nos próximos dias caso eu não tivesse percebido imediatamente a anomalia no sistema. Fiquei embatucado. Ora, sou do tempo em que se sequestravam pessoas, não coisas ou contas de e-mail. Onde já se viu sequestrar e-mails? Achei tudo aquilo um absurdo. Por que a atendente não afirmou simplesmente que meu e-mail teve um problema e pronto? Falar em sequestro, para mim, colocava o ocorrido em outro patamar. Claro que todos já ouvimos falar de sequestro de coisa, como sequestros de aviões, por exemplo. No entanto, nesse caso, sequestra-se uma coisa, um objeto, mas no fundo o alvo do crime são os passageiros, as pessoas. É a vida humana em perigo. Assisti a vários filmes cujo mote era um sequestro. Em Fargo, um vendedor de carros com problemas financeiros contrata dois bandidos para sequestrarem sua esposa para que ele peça resgate ao sogro. Com desfecho trágico, é um dos melhores filmes dos irmãos Coen. Merecido Óscar de melhor roteiro de 1996. Outro que me toca é The Crying Game, de 1992, que recebeu em português os nomes de Traídos pelo desejo, no Brasil, ou Jogo de lágrimas, em Portugal. Fergus, membro do I.R.A. (Irish Republican Army, Exército Republicano Irlandês), e seu grupo sequestram o soldado britânico Jody, mantem-no aprisionado e pedem um resgate por ele, que deve ser pago ao cabo de três dias. Fergus, que fica diretamente encarregado de vigiar Jody, acaba se afeiçoando a ele. Jody, sabendo que vai morrer, pede a Fergus que vá para Londres atrás de sua namorada Dil, para certificar-se de que ela ficará bem. Durante o tempo no cativeiro, a cena em que Jody conta a Fergus a fábula O escorpião e o sapo arrancou lágrimas de muita gente. Na sequência, Fergus, que acabou ficando amigo de Jody, não o executa, mas Jody morre acidentalmente durante uma ação do exército britânico. Muito abalado, Fergus vai atrás de Dil para cumprir o que prometera ao amigo e acaba descobrindo que o relacionamento de Jody e Dil escondia surpresas. Um filme excelente, Óscar de melhor roteiro original, cuja trama desenvolve-se a partir de um sequestro. Continuando minha viagem pelo universo dramatúrgico dos sequestros, cheguei à conclusão de que temos um mestre brasileiro no assunto: João Emmanuel Carneiro. Em seus três maiores sucessos, esse tipo de crime movimentou as tramas. Em Da Cor do Pecado, 2004, Paco (Reinaldo Gianechini) é feito refém no lugar de seu filho, o menino Raí, na reta final da história que alcançou índices de audiência espetaculares para uma trama do horário das sete. Quatro anos mais tarde, a vilã Flora (Patrícia Pillar) de A Favorita simula um sequestro do qual se torna refém junto com a própria filha, Lara (Mariana Ximenes). Seu objetivo era obter dinheiro do avô de Lara, Gonçalo (Mauro Mendonça), além de fazer com que a filha, que não a aceitava como mãe, gostasse dela. Mais recentemente, Carminha (Adriana Esteves) em Avenida Brasil, mancomunada com o concunhado e amante Max (Marcello Novaes), simulou o próprio sequestro para arrancar dinheiro de seu marido, o inocente jogador de futebol Tufão, interpretado por Murilo Benício. Na literatura, várias lembranças. Quantos sequestros, quantos raptos! Em minhas recordações, O Rapto do Garoto de Ouro, de Marcos Rey, ocupa lugar especial. Aliás, quase todos os livros da Coleção Vaga-lume, que encantou diversas gerações, são afetivamente especiais. Quanta ansiedade a cada página, a expectativa de saber quem havia raptado Alfredo, o menino de ouro que faria um show em homenagem a seu próprio aniversário numa cantina no paulistaníssimo bairro do Bixiga. Meu percurso afetivo pela ficção levou-me a um resultado que, de certa maneira, eu já previa: como já disse em outra ocasião, estamos amando as coisas e usando as pessoas. Sábios meliantes, sempre perspicazes, de olho nas tendências. Já não sequestram pessoas e seus capuzes são a virtualidade do mundo digital.
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Atualizado em ( 13-Mai-2015 ) |
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