Superfície lisa e muito polida, capaz de refletir a luz e as imagens de objetos e pessoas. Lâmina de vidro ou de cristal, metalizada na parte posterior; sua face anterior é usada para refletir a luz e as imagens de qualquer material. Eis, então, o sentido literal que define um misterioso objeto. O espelho faz parte da humanidade, da alma humana, e já vai longe o tempo em que Narciso tentou abraçar a própria imagem nas águas calmas de um lago que lhe fizeram as vezes de espelho. Enamorado de si mesmo, acabou enredado na própria paixão e na impossibilidade de tocar seu reflexo sem que este se desfizesse de imediato. Segundo a mitologia, morreu Narciso e nasceu a obsessão humana pela busca da perfeição da autoimagem.
Deslumbrados e surpreendidos, tupiniquins aceitaram espelhos por escambo, e se lhes foi embora por completo a liberdade: os europeus ganharam a América, impuseram suas armas, instalaram-se, abancaram-se, aviltaram e exploraram. Fizeram a América. Certa vez, uma senhora convalescente – Dona Nana, amiga de minha avó –, analisava um espelho que pairava no ar, suspenso como um pássaro ou qualquer outra criatura alada, sem nenhum apoio. As bordas do espelho não eram lisas, mas sim totalmente pontilhadas, com o relevo que tem a casca da jaca, só que em miniatura. Quantas vezes aquelas mãos de Dona Nana, quando infantis, tinham fitado aquele objeto e se entretido com ele? Como terá o espelho se recomposto no ar, mesmo depois de tanto tempo sem jamais ter sido recordado, lembrado, deplorado? A senhorinha em convalescência e ainda muito adoentada imaginou que aquela imagem não viria do espaço, nem de nenhum outro lugar exterior, mas de dentro de si mesma, da sua memória que repentinamente passou a liberar, íntegra, perfeita, isenta de qualquer desastre ou morte, o espelho de bordas pontilhadas sob a luz do qual lhe escovavam os dentes e lhe penteavam os cabelos na infância. Dos espelhos também queremos, os jornalistas, nos apropriar. A teoria mais antiga na qual o Jornalismo tenta se apoiar leva o nome desse objeto mítico e peculiar, é a Teoria do Espelho, que pressupõe que as notícias não devem ser mais que um mero reflexo da realidade. Imparciais, portanto. As notícias são como são porque a realidade, pura e simples, nua e crua, assim as determina, não há interferência das crenças nem dos pontos de vista do contador das histórias, o jornalista que as relata. Mas o que dizer, então, do homem que vejo todas as manhãs naquele quadrado de vidro? Ele, à diferença de mim, é destro: escova os dentes e se penteia com a mão direita. Inclina o cabelo para a esquerda e coça seu braço direito no mesmíssimo instante em que eu coço meu esquerdo. Será o espelho, portanto, a imagem exata de nós ou, ao contrário, nosso avesso? Jornalismo-espelho é, assim, Narciso no lago? Dona Nana – e não Naná – faleceu, fraquinha, dia desses. Podia ser uma árvore, podia ser um gatinho ou um cachorro. Quanta coisa estimada podia ser! Mas fora o misterioso espelho com borda de pontilhado miniatura de casca de jaca a visitá-la. O tal espelho, da mesma formas repentina que surgiu, desapareceu. Neste mundo vazio e louco, o espelho se tornou o melhor amigo de muita gente. Até os hipnotizantes celulares moderníssimos de hoje em dia têm aplicativos capazes de refletir a imagem. Como teria sido a história da Branca de Neve, perseguida por sua madrasta, se em vez de espelho mágico a narrativa contivesse um aplicativo da telefonia móvel? Trocariam a senha do wi-fi e seriam felizes para sempre? O que nós malucos deste mundo vazio e louco esquecemos, assim como o Narciso que acha feio o que não é espelho na famosa canção, é que os espelhos são precisamente síncronos e não perenes. Eles têm essa propriedade maravilhosa de nada escravizarem, de nada reterem. Refletem em silêncio todas as confidências e imperfeições, porém logo as apagam. Guardam segredos como ninguém.
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