De longe, somos todos normais |
Escrito por Jamil Alves | |
23-Set-2015 | |
Que atire a primeira pedra na esquisitice alheia quem não tiver uma coisa estranha para contar. Portanto, não serei eu o primeiro a atirar pedras na esquisitice de ninguém, porém devo confessar que esquisitice é um tema que considero deliciosamente interessante - não só porque é praticamente infinito, mas também porque se mostra, em muitos casos, engraçado.
Há manias que quase nem são manias. Estão próximas da normalidade, como aquela de desvirar um chinelo esquecido com a sola para cima para que a mãe não morra. De tão comum e generalizada, acabou fazendo parte de uma espécie de folclore bem-humorado. Desvire seu chinelo, salve a vida de sua mãe e, de quebra, dê umas boas risadas. Outras esquisitices, no entanto, flertam com a demência, desvelam um medo tenebroso de viver. Uma prima do meu cunhado, insaciável fazedora de guloseimas e de todo tipo de trabalhos manuais como bordados e artesanatos, não come rúcula porque lhe dá cólica. Isso mesmo: rúcula dá cólica. Não dorme em colchão duro por causa da cervical, não dorme em colchão mole por causa da lombar. Não toma sorvete porque não pode ficar gripada.- Quer sorvete, Milena? - Não, não posso ficar gripada. - Ora, se tiver gripe, tome remédio. - Não, porque posso ter tosse. Além de não tomar sorvete por medo da gripe, não consome nada frio nem gelado porque não pode tossir. Azeitona? Nem pensar. Muito salgada, faz subir a pressão. Pudim? Não, não. Doce ataca a labirintite. O que acontece, no fundo, é que vê sua vida passar observando-a sem vivê-la, preenchida de nada e de vazio com suas esquisitices hipocondríacas, como se fosse mera espectadora da própria história. São tantas esquisitices no mundo de hoje que elas podem até ser classificadas por categorias. Temos umas que são coletivas, como a esquisitice de achar que um grande gramado verde delimitado por linhas brancas no qual 22 marmanjos correm atrás de uma bola é algo divertido. Nem o cara de preto correndo atrás dos outros 22 com um apito na mão consegue fazer o negócio ficar menos chato, mas quase todo mundo que conheço gosta disso. Para mim, pura sandice coletiva. Estranho também é existir quem more em mansões com tantas partes e compartimentos que não são nem frequentados enquanto há muitas outras pessoas morando em barracos improvisados, à mercê de toda sorte de coisa ruim. E também é esquisitíssimo comprar apartamento. Afinal, um apartamento é uma capsula emparedada em cima ou embaixo da casa do vizinho, um espaço imaginário em cima da cabeça de alguém, na verdade. Comprar um apê é quase como comprar um pedaço do céu, portanto, só que na terra, ainda que longe do chão, entende? Não? Que esquisito... Outras esquisitices são de um tipo sazonal. Muitas delas são gringas, emprestadas ou importadas. Em outubro do ano passado, minha sobrinha comemorou Halloween na escola, mas não faz nem ideia do que sejam saci, boi bumbá e caipora. A tal da Black Friday em novembro se tornou nada mais que um embuste, um "vem cá que eu vou te passar a perna" datado, institucionalizado e nacionalizado. Primeiro sobem o preço da bolsa de 100 para 250, depois dão um descontão de 50% - e há quem fique feliz com a "pechincha". E é preciso acrescentar as esquisitices de dezembro, a aflição de ver aqueles senhores de roupa vermelha e barba branca rindo debiloidemente com criancinhas no colo, a comilança indigesta no calor inclemente e as reuniões familiares com os parentes que passaram o ano inteiro falando mal de nós. Existem, além dessas, muitas esquisitices individuais, cujos esquisitos não as confessam ou o fazem apenas diante dos amigos mais chegados. Tenho uma tia que só sai dos lugares com o que ela chama de "hora redonda", que são, segundo sua lógica peculiar, a hora redonda mesmo, sem minutos, a hora e quinze, a meia hora e a hora e quarenta e cinco. Assim, se ela estiver em algum lugar e pensar em sair às duas e oito, vai logo dizendo: "eu vou embora, mas vou esperar arredondar", deixando o lugar apenas às duas e quinze. Se se distrair com algo e se aperceber novamente às duas e dezessete, próximo horário de saída só às duas e meia. Uma grande amiga minha não gosta de três coisas: sapo, pé e curva de estrada. Sapos são frios, gosmentos e feios, lhe causam ojeriza. Pensei que não gostasse de pé porque lhe parecessem feios, mas me contou que seu problema com as extremidades inferiores do corpo humano vem dos fatos de que não gosta que mexam no seu pé, é muito aflitivo, e que se alguém lhe encosta o pé, ela sente falta de ar. Curvas de estrada também são detestáveis porque guardam o imprevisível. "Quem faz curva numa estrada tranquilamente"? De tanto se ver em situações embaraçosas, teve um lance tão simples quanto genial: pula a parte dos batráquios quando vai ao zoológico, salão de beleza só para os cabelos e as mãos, e o marido, além de sempre dirigir nas estradas quando viajam de automóvel, passou a dormir numa posição diagonal, com a cabeça próxima e os pés distantes dela, para que ela não ficasse sem ar de noite. É o amor com esquisitices - mas genuíno, sem constrangimentos. |
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