Minha tia quer ir a uma
clínica. Quer morar em uma clínica especializada em idosos. Na verdade, minha
tia-avó, a tia Maria.
Tia Maria nasceu em
agosto de 1932, uma leonina típica para aqueles que creem em astrologia. Sempre
teve fama de briguenta e geniosa, e toda a sua biografia vai ao encontro dessa
tese.
Filha de uma família de
imigrantes portugueses que chegaram ao Brasil em 1924, era a mais velha das
mulheres. Antes dela, vieram três varões: Manoel, em 1914, José, meu avô
materno, brasileiro, em 1924, e tio Aurélio, em 1927. Cinco anos depois nasceu
Maria, dois anos antes de Flávia, a vaidosa tia Flávia.
Tia Flávia casou-se
três vezes (duas, oficialmente). Da primeira vez em que foi casada, seu marido,
Haroldo, que era considerado rico na vizinhança porque tinha um Fusca, a traiu.
Não só tinha um caso com outra mulher como tivera com ela dois filhos gêmeos.
Em 1962, quando foi descoberto o adultério e feito o desquite, os tais gêmeos
já eram bem grandinhos. Não havia divórcio naquela época e, para uma mulher
dita “de bem”, ser desquitada era algo bem difícil aos olhos da sociedade.
Flávia nunca quis ter
filhos. Numa época muito mais machista que agora, foi o argumento de Haroldo
para justificar a traição. No fim das contas, a situação acabou ficando como
se, de certa forma, Flávia fosse a errada, a traidora. Onde já se viu uma
mulher não querer dar filhos a seu marido?
Em 1964, um golpe
militar pôs fim ao governo do presidente Jango, João Goulart. A liberdade foi
varrida, direitos foram cessados, inocentes foram caçados. Humberto de Alencar
Castello-Branco tornou-se presidente até 1967, quando Costa e Silva subiu ao
poder. Porém a esfera política nunca pareceu afetar muito nem a vida de Flávia,
nem a de Maria, embora tivessem amigos que, da noite para o dia, desapareciam. Isso
não era, para elas, motivo de preocupação: viviam num mundo um tanto alheio aos
grandes fatos.
Já nos anos 70, Flávia
conheceu Oscar, funcionário de um laboratório, que se apaixonou perdidamente
por ela. Mesmo não podendo se casar (não havia divórcio e a lei não permitia um
segundo casamento), Flávia se rendeu aos encantos de Oscar e então foram morar
juntos num sobrado no bairro da Água Rasa, na região leste de São Paulo, um
simpático distrito nas imediações da Mooca e do Tatuapé.
Tia Maria, que sempre
foi chamada de “praga” por quase toda a família, nunca simpatizou com nenhum
homem que se aproximasse da irmã. Várias vezes enredou a caçula em fofocas que
geralmente rendiam surras e agressões de seu pai.
Quando o pai de Maria e
Flávia faleceu – Seu Manoel, como seu primogênito –, Flávia morava com Oscar. O
casarão da família, na Rua Coronel Quartim, no Tatuapé, ficaria para Maria e
mais ninguém. Naquele tempo, no entanto, uma mulher morar sozinha era algo
complicado, mal visto. Assim, Maria foi morar na casa do irmão Aurélio, na Vila
Carrão. Porém as sucessivas brigas com a cunhada, Ana, com os sobrinhos e até
mesmo com o irmão fizeram-na mudar de planos. Acabou indo morar com o irmão
mais velho, também na Vila Carrão. Pelos mesmos motivos de brigas e
intransigência, a estada de Maria na casa do irmão Manoel foi curta.
Outro problema foi que,
nos meses em que ficou vazio, o casarão da família fora invadido. Com o
pretexto de que a Textilha, empresa em que trabalhava, ficava na mesma rua,
Coronel Quartim, tia Maria quis voltar para a casa do Tatuapé, mesmo morando
sozinha. Com a ajuda de alguns amigos policiais, Manoel conseguiu que os
invasores fossem expulsos e, a casa, desocupada e devolvida à família (qualquer
esforço era válido para se livrar “da praga”). Nesse ínterim, Flávia e Oscar já
viviam uma relação desgastada. Flávia abandonou o companheiro para voltar à
casa do Tatuapé também, para fazer companhia à irmã.
A década de 80 chegou e
a vida de Maria e Flávia continuou sem sobressaltos e até com algum tédio. Então
apareceu o senhor Altino, que era tio de Cida, a vizinha da casa ao lado.
Flávia e Seu Altino se conheceram num dia ensolarado em que ele fora visitar a
sobrinha, e Flávia estava lavando o quintal de bermuda, botas de borracha e
mangueira em punho.
Flávia e Altino
casaram-se e viveram um tempo feliz numa casa alugada e charmosa no bairro de
Santana. No entanto, com as sucessivas crises e planos econômicos da época, os
dois acabaram indo morar com tia Maria, no casarão da família. Plano Cruzado,
Plano Cruzado II, Plano Bresser, Plano Verão, Plano Collor, mas tia Flávia e
tia Maria pareciam nem perceber os acontecimentos do país. Nunca foram
politizadas, estavam ocupadas demais com ninharias e frivolidades, banalidades
do cotidiano que lhes preenchiam o tempo.
Em 1988, Seu Altino, 23
anos mais velho que Flávia, resolveu fazer uma cirurgia de retirada de pedras
na vesícula e acabou falecendo. A Flávia, uma Brasília bege de herança, no
tempo em que uma Brasília não era um automóvel tão mau assim. Até bem pouco
tempo, Flávia jurava que não tinha recebido um centavo sequer da venda do carro.
Tomou calote de um parente de um vizinho.
Desde então, Flávia e
sua irmã Maria vivem sozinhas. Nunca gostaram muito de gente por perto,
provavelmente devido à mania de limpeza de ambas. Dava até um desconforto
visitá-las: tinham um lar limpo, mas pouco acolhedor. Ficava claro para
qualquer visitante ao entrar na casa delas que aquele não era o seu lugar e que
ali não poderia ficar totalmente à vontade. Pouco a pouco, foram afastando
todos os parentes de perto de si.
Só que, dia desses,
semana passada, tia Maria ligou para todos os sobrinhos para dizer que tia
Flávia não está bem; não se lembra de nada, diz coisas desconexas. Não tem nem
mais o domínio pleno do corpo nem das necessidades fisiológicas. Tia Maria quer
ir a uma clínica. Quer morar em uma clínica especializada em idosos, conforme
já contei. Ela e Flávia, de quem alega não ter condições de cuidar.
No casarão bem
conservado, agora, só o silêncio triste, a inexorável sensação do decrépito e
do finito. Na rua de trás, sobre a casa, no horizonte, ergue-se o esqueleto de
um arranha-céu, futuro lar das tantas Flávias e Marias vindouras.
Nos fins de tarde,
pássaros dos mais diversos tipos voam e cantam, parecem querer fugir da
balbúrdia insana das vias do entorno, da Celso Garcia e da Ulisses Cruz.
Desejemos, pois, que algum deles eleve a Deus sua queixa contra as
consequências das escolhas infelizes, das maldades da Terra – e que seja
atendido. Porque os homens – ai de nós! – além de estressados estamos ficando cegos
e surdos aos sinais que a vida nos dá.
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