Estamos todos doentes,
somos enfermos do tempo. O homem construiu pontes, prédios, naus, criou o
progresso e o trabalho. Burlou o tempo, a velocidade e o espaço com a
tecnologia, porém adoeceu. Estamos todos enfermos de ansiedade, doentes de
muito amanhã e pouco hoje.
Tanto é assim que todo
mundo fica alegre às sextas. Ora, por que a felicidade nesse dia específico, a
sexta-feira, se ele é um dia útil como a segunda, a terça e os outros dois? A euforia
da sexta é falsa, ludibria: não é a sexta que nos alegra, mas sim a ilusão do
sábado.
O mesmo acontece com a
tristeza do domingo, que é um dia calmo, de descanso. Associam o domingo ao
desânimo e à apatia porque não sabem vivê-lo. Equivocam-se as pessoas,
equivocamo-nos todos: o domingo é para ser descansado, sorvido aos poucos, é
dia de deleite. Não provemos num domingo os dissabores de uma segunda.
Equívoco com o tempo
também foi o mal de Orfeu da longa e bela história mitológica. A jovem Eurídice, sua amada, retornaria
com ele ao universo dos vivos, desde que ele não olhasse para ela até estar
novamente sob o Sol. Ele consegue resistir através de túneis sombrios e
difíceis de atravessar; já estava quase alcançando sua meta quando, por
ansiedade e para ter certeza de que Eurídice estava logo atrás, espia por um
instante a parte final do caminho. Neste momento, Eurídice se transforma
novamente em um espectro, lança um último grito e parte novamente para a esfera
dos mortos.
Outro dia, fui tocado por um texto – delicioso, de
Rubem Alves – que discorria a respeito da falta de tempo dos pais para os
filhos. Era uma sessão de terapia. “Não tenho tempo para educar a minha filha”,
ela disse. Um psicanalista ortodoxo constataria que ali estava um fio solto no
tecido da ansiedade materna. No entanto, o psicanalista do texto não puxou o
fio solto dela, ofereceu-lhe apenas seu próprio fio: “Eu nunca eduquei os meus
filhos... Eu só vivi com eles”.
A infância é muito curta. Muito mais cedo do que
se imagina, os filhos crescerão e baterão as asas. Já não nos darão ouvidos, já
não serão nossos. No curto espaço da infância, há apenas uma coisa a ser feita:
viver gostoso com eles. Vivendo juntos, pais e filhos aprendem. A coisa mais
importante a ser aprendida nada tem a ver com informações. Temos de viver com
nossos filhos sem currículo, a vida em si é o currículo.
Há muitas pessoas bem informadas que são completamente
idiotas. Ansiosos, afastam os filhos de si porque os querem técnicos, sabidos,
espertos, senhores de si. Quantos pequeninos vejo à minha volta, nos
condomínios da cidade grande, matriculados no balé, no judô, na natação, no
inglês, no kumon... Subtraem desses
pobres pequeninos o tempo de serem crianças. Quando os filhos são pequenos,
ensina-se muito mais pela relação lúdica que deve haver entre pais e filhos do
que pelo currículo. O currículo é para mais tarde. Pena que pouquíssimos pais
percebam isso.
Presenciei, numa manhã de domingo, numa pracinha,
uma cena triste: um pai levava o filho pra brincar. Com a mão direita empurrava
o balanço. Com a mão esquerda segurava o tablet
que estava lendo... Em poucos anos, sua mão direita estará vazia. Em
compensação, ele terá duas mãos para segurar o tablet. Mais um pai – que pena! – que não sabe viver a beleza do que
o hoje lhe oferece.
Vivemos esse “deslocamento do tempo” em todas as
esferas de nossas vidas. À expectativa de votação de impeachment na Câmara, os mercados reagem com subida nas bolsas e
baixa do dólar. Às possibilidades de julgamento no Senado, o mesmo. E nisso já
se vai quase um ano e meio de impasse e de futuro que não chega, que a oposição
quer apressar e, a situação, adiar. Se afastada a presidente, sua ausência
temporária pode durar até 180 longos dias, seis meses para que se torne, então,
definitiva, mas sempre haverá aqueles que se comportarão hoje de acordo com o
resultado futuro.
Estamos
todos doentes, somos enfermos do tempo. A sabedoria
popular diz que o tempo cura tudo, mas só concordo com isso em partes. O tempo
vivido, sincrônico, é bom, é o único que há e que pode transformar e curar o
que precisa de cura. Excesso de passado é depressão. Excesso de futuro, desassossego.
O “tempo
presente” não tem esse nome à toa: trata-se de “um presente”, mesmo: un regalo, no espanhol, a gift, no inglês. Então o tempo é um
presente, o tempo é o presente: não é a olhadela ansiosa de futuro de Orfeu,
que desgraçou Eurídice, nem o passado saudosista de muita gente, quando
“antigamente tudo era melhor”. Tempo, como disse Caetano Veloso, é um dos
deuses mais lindos: “És um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho, Tempo,
Tempo, Tempo, Tempo, vou te fazer um pedido”... Zara, Tempo!
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