E parece que já vai longe o tempo em que uma pessoa nascia com o seu destino traçado. Não deve ter sido bom esse tempo - que consiste em praticamente tudo o que existiu na humanidade antes de nós nestes últimos vinte ou trinta anos -, mas era ao menos mais tranquilo.
Quantos filhos não nasceram num mundo pronto, de quase nenhuma opção, no qual se herdavam a profissão e o destino dos pais? Pai açougueiro, filho açougueiro. Pai marceneiro, filho marceneiro. Mãe dona de casa, filha dona de casa. Era um mundinho com uma paleta de cores reduzida e bem pálida, porém não trazia consigo o peso da liberdade.
No passado, é bem verdade que a falta de liberdade representava um peso, um grande fardo. Se por um lado era mais difícil ser feliz, por outro era mais fácil encontrar um culpado pela infelicidade: "ah, eu não fui feliz na minha profissão porque tive de seguir a que meu pai me impôs, que também é a mesma do meu avô".
Por outro lado, nestes dias que correm agora, podemos ser o que quisermos. Mas, se o que buscamos não acontecer, se não alcançarmos o que almejamos, em quem vamos, neste mundo lindo de possibilidades, pôr a culpa? Eis aqui onde a liberdade nos pesa: temos a felicidade ao alcance de nossas mãos, mas não sabemos onde ela mora nem o que ela come; nem sequer sabemos o que ou quem ela é, que cara ela tem. E, choremos: o ônus dessa busca incessante e inútil pela felicidade é todo nosso, nada de jogá-lo na conta do papai nem do vovô.
Antes, o homem de tecnologia rudimentar era quase sempre uma vítima das circunstâncias, dos acontecimentos, das incertezas das colheitas, dos infortúnios do clima, das subidas bruscas das marés. Hoje em dia, no entanto, o que se vive é certa sensação de previsibilidade proporcionada pelos avanços tecnológicos. Mas isso não impede que a região serrana do Rio seja devastada por uma chuva forte, nem que um viaduto despenque em Belo Horizonte em plena Copa do Mundo, nem muito menos que centenas de árvores paulistanas venham abaixo a cada chuva forte, a cada vento mais atrevido. As maravilhas da tecnologia ainda não encontraram eco no pouco avanço moral dos indivíduos.
Na base do mundo maravilhoso de possibilidades de agora está a democracia - pelo menos na maior parte deste lado ocidental do globo terrestre. O "governo do povo", que é o que a palavra democracia significa, deveria responder aos anseios de bem-aventurança das sociedades modernas. Porém, mesmo assim, nem milhões de votos são capazes garantir infalivelmente a um povo um governo para uma terra justa e feliz. Milhões e milhões de bons e genuínos desejos não são capazes de barrar a desonestidade dos políticos, as vergonhas nacionais, as estatais dilapidadas, varridas do universo das empresas sérias e confiáveis. Pois é: ninguém sabe o que é felicidade, nem onde mora, nem o que ela come. Vai ver gosta de jiló.
O mundo de antes era o mundo de poucas possibilidades e de muitas certezas. Era como se a Grécia tivesse sido posta onde foi exatamente para ser o ponto de encontro do Ocidente com o Oriente, da Europa com a Ásia e a África, num obrigatório cruzamento de altas colunas com conjecturas matemáticas e confluências de espírito, como uma promessa de pacificação compactuada entre o divino e o humano.
Ou, também, no mundo de antes era como se o Cristo Redentor sempre houvesse estado lá, no alto da montanha, com seus braços abertos a nos abençoar. Como se o Rio de Janeiro existisse onde existe simplesmente para ser o que é: espelho de nossas glórias e vergonhas, belezas e feiuras; guardião de nossa idealização de paraíso, reflexo de nosso caos.
Uma das leis mais importantes do universo, presente na essência de quase tudo o que nos cerca, é a teoria do caos: uma mudança no início de um evento qualquer pode ter consequências de dimensões incríveis e praticamente imprevisíveis no futuro. É como se o bater de asas de uma borboleta nos pampas da Argentina causasse, tempos depois, um tornado no Alabama. Eis aqui a lei que impera, que rege todas as coisas e fatos que há.
A busca da tal felicidade, etérea e desconhecida, e a teoria do caos, que está na base de tudo, são as grandes definidoras da vida humana. Elas fazem de nós, sem exceção, habitantes da Macondo de García Márquez, na qual todos, dispostos a lutar contra o esquecimento crônico que os acometia, penduraram nos cachaços das vacas os seguintes dizeres: Esta é a vaca, tem-se que ordenhá-la todas as manhãs para que dê leite e o leite deve ser fervido para ser misturado com o café para fazermos café com leite. Então, continuaram vivendo numa realidade escorregadia, momentaneamente capturada pelas palavras, mas que haveria de fugir sem remédio quando esquecessem os valores da letra escrita.
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