É muito boa a localização. No sentido do centro, está uma grande universidade, instalada no antigo prédio da fábrica da Alpargatas, empresa produtora de calçados. Um prédio diferente, charmoso, com bonitos detalhes arquitetônicos e ao lado de uma linha de trem (a linha 10, Turquesa, que liga o central bairro do Brás à cidade de Rio Grande da Serra).
Na via em direção aos bairros, ficam uma loja de serviços automotivos e um bem iluminado posto de gasolina, cada um ocupando uma esquina da Rua Piratininga. E é entre esses dois lados da avenida que homenageia o escritor e jornalista paulistano Alcântara Machado, nascido em 1901, que vem nascendo uma favela, que vai crescendo lentamente, como é típico de um organismo que vai sendo gerado no ventre da metrópole.
Começou como uma espécie de acampamento sob o pavoroso viaduto de concreto que passa por cima da linha do trem, viaduto que leva o mesmo nome da avenida, Alcântara Machado, ligação do centro à Mooca e a praticamente toda a região leste paulistana. Ao contrário de outras partes miseráveis da cidade, que são cercadas pelo poder público com tapumes ecológicos quando o número de habitantes torna-se indisfarçável aos olhos da cidade endinheirada, nesse ponto os tapumes são metálicos, disformes. Estão lá também papelões, cobertores grossos e outros elementos que não distingo, combinando-se para formar algo que deve ter a função de paredes. O lugar dá a impressão de que está evoluindo, deixando de ser um improvisado agrupamento de sem-teto para ser uma favelinha de verdade.
Aos olhos do poder público, é um lugar invisível. Está sob um viaduto, perto de uma linha de trem, num ponto obscuro de noite e de dia. É um ponto “sob”, e não “sobre”, daí então o motivo por que é mais fácil “varrê-lo para baixo do tapete”. O grande fluxo do trânsito que vai e volta da zona leste passa por cima do viaduto. Por baixo, especialmente na rua Piratininga, passa apenas um pequeno fluxo de carros e de pedestres, em geral de pessoas que trabalham nos arredores. Além disso, metade do viaduto pertence ao centro e à Administração Regional da Sé (para quem não é de São Paulo: a imensidão da cidade a faz ter subprefeituras, chamadas de “administração regional” pela imperiosa e velha conhecida burocracia). Os outros 50% estão na área correspondente à Administração Regional da Mooca, e temos aí panorama perfeito para o jogo de empurra-empurra das responsabilidades. Não só não impedem que essas pessoas se instalem no local como tampouco lhes prestam qualquer assistência. É mais fácil mantê-los ocultos sob o triste manto da invisibilidade, como se não existissem.
A situação desses homeless enjeitados é uma sinuca de bico. É nas ruas do centro que eles encontram comida, papelão, sobras de toda espécie, e sempre procuram abrigo perto de onde ganham o pão. Por outro lado, se aceitassem ir para bairros distantes, teriam chances mais escassas de ganhar uma graninha, um troco qualquer. O dinheiro da passagem de ônibus para ir à região central na certa lhes faria falta, sem falar que os passageiros torceriam o nariz à sua entrada. Ao que parece, pobre só tem graça em letra de música ou em texto literário.
Um dia, não lembro quando, ouvi alguém dizer que “quem gosta de pobre é intelectual”. Então, é isso: está faltando intelectualidade por aí – deve estar todo mundo caçando Pokémon, isso sim. Esses desvalidos, moradores dos tantos e quantos viadutos e malocas da cidade, permanecerão invisíveis, esquecidos, vivendo da caridade de quem os detesta, como dizia a letra de “O tempo não para”, de Cazuza.
A cada semana, há um novo amontoado de papelão, cobertores e trapos naquele que é, para o poder público e para os “cidadãos ditos de bem”, um ponto cego, um lugar a não ser visto. Do carro, à espera do farol verde (“farol” é como os paulistanos nos referimos ao semáforo), vejo mais que cobertor e trapo: são lares. Sofás, colchões, televisores a cores ligados na clandestinidade. Bichos de estimação também, e aos montes, principalmente gordos e imponentes cachorros, completam o quadro. Parecem guardiães prontos a receber carinho, mas também a atacar qualquer pessoa que possa fazer mal aos moradores do local. É um cenário mal ajambrado que vai dando ares de casa àquelas instalações.
Debaixo desse mesmo viaduto, nem tudo é desalento. Funciona, já há vários anos, uma academia e uma escolinha de boxe, fundadas por um ex-boxeador, cuja história tive a alegria de conhecer e de contar, nesta mesma coluna, em 2015. Ainda enquanto o farol está vermelho (e agora me dou conta envergonhado de que por medo, burrice, preconceito ou ignorância – ou tudo isso junto –, nunca passei a pé por esse lugar), observo a dinâmica daqueles desvalidos que perambulam e me sinto mal, porque eu não passo de carro numa rua: eu passo de carro no meio da sala deles.
Nessa sala metafórica, estão muitos meninos. Sinto um nó na garganta, uma vontade forte de chorar. Vem meu filho à minha mente e não entendo por que ele tem educação, conforto, alimentação, tudo a tempo e a hora, e tantas crianças, não. Essas crianças “do viaduto” passam entre os carros como meu menino passa entre o sofá e os almofadões da sala de estar. Aquelas crianças me comovem e me constrangem. Quando o farol abrir e eu for embora, estarei me sentindo um pouco menos humano e um pouco mais verme. Gostaria de saber o que pensam, com que sonham, do que precisam, porém não tenho coragem de descer do automóvel para falar com elas. Até baixar o vidro me parece temerário. Mesmo sentado dentro de um carro e tentando autodisfarçar uma enorme covardia, desejo a elas, ainda que com certa desesperança, do fundo da alma e dos meus olhos marejados, o mesmo destino de grandes façanhas e de alegrias ilimitadas que quero para meu filho.
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