O atirador do 1008 |
Escrito por Jamil Alves | |
13-Out-2016 | |
Aqueles estampidos quebraram o silêncio da noite. Quem terá ousado sobrepor algum barulho à fala do apresentador do meu telejornal favorito? Um ladrão na rua de trás? Algum marido ciumento no prédio da frente? O vizinho da porta ao lado? Tive um dia esgotador, deixem-me voltar ao meu sossego! Outros disparos ocorreram. Crack, pow, kaplow!, e paro por aqui antes que me faltem onomatopeias ou anglicismos. Foram dez ou mais tiros num intervalo de aproximadamente quinze minutos. Se não foi o tempo real do relógio, então deve ter sido a duração do assombro criada pelo meu desassossego, inúmeras foram as tragédias que temi naquele momento: um atirador haveria de ter entrado no prédio, ao estilo boate Pulse, de Orlando? Seria um assalto ao condomínio na madrugada? Uma invasão de marcianos, uma praga de gafanhotos? Ainda bem que alguém chamou a polícia, ufa! Oito viaturas paradas na porta do edifício fizeram me sentir importante. Se não estamos protegidos, pelo menos temos a ilusão de que estamos! A polícia levou o vizinho e eu assisti a tudo pelas câmeras do condomínio, que têm conexão com meu celular, tudo num estilo tão Big Brother que daria inveja até em George Orwell* com seu sentimento de distopia.Vizinho, para que ter uma varanda tão bonita se você não sabe para que ela serve? Na minha, aqui em cima e ao lado, não temos armas. Temos dois aquários, alguns móveis de descanso, como uma namoradeira de estilo retrô, um arranhador de unhas para os três gatos da casa, alguns bancos rústicos e uma mesa de madeira onde fazemos os jantares olhando as luzes da noite e o brilho das estrelas, mesmo sendo poucas as noites em que o céu de São Paulo permite contemplar essas gracinhas celestiais. Não, vizinho, você não me conhece. Eu a você, muito menos. Não faço nem ideia de como é o seu rosto, não sei o seu nome. Mesmo vendo a sua prisão pelas câmeras, não consegui identificar seus traços. Só deu para ver seu jeito meio ausente e aparentemente entorpecido não sei por que coisa nem por qual causa.Bem, como não sei seu nome nem você sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois meros números, você 1008 e eu 1107, dois números empilhados entre centenas de outros, neste condomínio com torres e colunas batizadas com nomes de províncias e de cidades italianas. Eu, 1107, me limito a sul com o hall do 1103, a norte com a vista da varanda (gourmet, e não de tiro ao alvo ou tiro a esmo, não se esqueça!), a leste e pela entrada de serviço com o 1108, que fica em cima do seu, a oeste com a vista da rua, das antenas de tevê da Avenida Paulista e da entrada da garagem, abaixo com o 1007, seu vizinho next door e, acima, com o céu e os motores do elevador. Esses números, todos eles, são comportados e silenciosos – menos o seu depois de ontem, claro! Você rompeu as normas do condomínio, fez barulho inapropriado, fora dos horários civis, teve seu nome (ou seu número) tirado da lista dos mansos e cordatos. Hoje de manhã, não se falava de outra coisa nos elevadores, nos salões e nos corredores. Você deixou a vizinhança em polvorosa, e não faltou quem dissesse, agora com o respaldo dos fatos, “eu sempre achei esquisitão aquele cara do 1008”. Nossa vida, prezado 1008, está toda numerada. E ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda o outro, mas o respeita, ficando sempre dentro dos limites de seus algarismos. Os seus tiros geraram ruídos e algarismos demais. Você deveria, assim que possível, pedir desculpas e prometer silêncio. Quem trabalha o dia inteiro tem direito a um merecido descanso noturno, porém é impossível repousar quando há disparos de pistola em alguma varanda próxima, não acha, senhor 1008? Os estampidos e os decibéis dos seus tiros me entristeceram, porque me mostraram que estamos extremamente longe da outra vida e do outro mundo com os quais eu sonho há muito, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: “Vizinho, é uma hora da manhã e notei que sua tevê está ligada, por isso vim. Tive um dia difícil e não tenho com quem conversar. Posso entrar?”. E o outro respondesse: “Claro, entra, vamos tomar um vinho, falar umas besteiras e dar umas risadas. Depois, pode levar meu Rubem Braga, mas me devolve logo porque ainda não terminei de ler”.* George Orwell foi um escritor britânico (1903-1947), que escreveu o livro 1984, no qual descreve a vida num Estado totalitário, que tudo controla, que tudo vê. Nesse livro, as conquistas tecnológicas são utilizadas como instrumentos de monitoramento permanente dos indivíduos. Todos eram comandados pelo “Grande Irmão”, o Big Brother (de onde, muito provavelmente, surgiu o nome do famoso programa de tevê, em 1999). |
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Atualizado em ( 13-Out-2016 ) |
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