Até tu? E agora, Romero? |
Escrito por Jamil Alves | |
26-Out-2016 | |
Tive uma infância feliz, de plena relação com
os animais. Eu não sabia nem juntar A com B ainda, mas já lidava com bichinhos
de diversos tipos, naqueles alegres anos 80 em que simplesmente não havia Pet
Shops em São Paulo. O mais próximo que existia disso eram as chamadas “Casas de
Aves”, espécies de “bisavós” dos Pet Shops de hoje, mas que serviam apenas para
vender galinhas e muitos outros tipos de aves, além de, no caso dos estabelecimentos
mais aparatados, peixinhos ornamentais, que eram baratinhos, baratinhos. Nem
sombra da ostentação dos preços dos aquários de hoje.
Fui criado numa casa com quintal grande, boa
parte de jardim e terra. Gostava de caçar tatu-bolinha e minhocas. Recordo que
meu passatempo favorito era capturá-los, espetá-los e tostá-los na chama de uma
vela. Era uma brincadeira bem gostosa para a criança que eu fui, apesar de o
adulto em que me transformei reconhecer certo sadismo nela.
Outra presa dentre as minhas favoritas eram
as formigas. Gostava de obrigá-las a nadar num pote de iogurte cheio d’água,
que funcionava como “piscina olímpica”. Já quando estavam à beira de um colapso
por fadiga, eu as liberava de volta à terra e me divertia vendo-as ir embora em
desabalada carreira – eu, no lugar delas, também sairia correndo de mim!
Há outra categoria de animais da infância que
quase nunca passam pelo mundo real. Recordo um ursinho alaranjado, de borracha
dura, que me acompanhou do berço até os meus doze anos, até o nascimento da
minha irmã caçula pelo menos. Como eu nunca pensei num nome para ele, acabou
pagão, pobrezinho. Minha irmãzinha certamente o destruiu sem nem termos pensado
em batizá-lo. Hoje eu arriscaria Laranjito, em honra à sua cor; ou Nenê,
talvez. Sei lá.
Além de sentir falta dos peixinhos
ornamentais, galinhas, porquinhos-da-Índia, patos, tatus-bolinhas, minhocas e
diversos gatinhos quizilentos da vizinhança que eu alimentava de vez em quando
sem que nunca tivessem sido meus, tenho saudade dos inúmeros cachorros que
tive, quase todos recolhidos por mim das ruas.
Minha estratégia para convencer meus pais a
me deixarem ficar com os cachorros que eu recolhia tinha um modus-operandi repetitivo: ao ouvir o
primeiro “suma com esse bicho daqui”, eu implorava para que me deixassem cuidar
do cãozinho por alguns poucos dias, até que estivesse bem, mais animado e mais
forte para enfrentar a dureza da vida nas ruas. Quase sempre a estratégia dava
certo, os dias iam passando, passando, passando... e os cachorros, ficando!
Foram tantos que nem posso lembrar-me de todos os nomes, mas alguns ficaram
marcados na memória.
Tatuzinho, Rex, Mocinha, Fofo. Tatuzinho foi
um presente de um colega de trabalho para o meu pai. Era acinzentado, carinhoso,
tinha um pelo felpudo. Lá pelos três anos de idade, morreu de parvovirose. Eu
não fazia nem ideia do que esse palavrão queria dizer, mas o trauma ficou até
hoje. Parvovirose parece hecatombe, armagedom, juízo final. A quem não souber o
que significa de fato, recomendo uma pesquisa na internet.
Rex também foi outro cachorro que meu pai
ganhou de presente. Era todo preto, grande, brilhoso, lindo. Disseram que era
da raça pastor belga, porém acho que ele nunca soube onde ficava Bruxelas.
Tinha mais pinta de SRD – sem raça definida. Mesmo assim, era lindo, lindo. Meu
grande amigo. Sua suposta ascendência, provavelmente fajuta, rendeu-lhe o
apelido de “Belga Velho”. E era isso que meu amigo Rex era de fato: meu velho
amigo belga, meu Belga Velho!
E a Mocinha, então, o que dizer dela?
Vira-latinha de tudo, de ascendência e descendência. Era beginha, focinho com
pelinhos brancos e os lábios delineados de preto, uma graça. Seu queixinho
prognata (conhecido popularmente como boquinha de gaveta) e seus dentinhos
tortos lhe davam certo ar de permanente sorriso, um charme único, só seu.
Caçava ratos melhor que muito gato, era impressionante como suas mordidas eram
certeiras! E, ao contrário do que se pode pensar, nunca teve problema de saúde.
Pelo menos, não por causa do contato esporádico com ratos. Se minha memória não
me estiver enganando, chegou à nossa casa depois do Rex e foi sua
contemporânea.
Fofo era um cachorrinho marrom. Outros como
ele parecem fazer parte de um tipo de animalzinho que saiu de moda, o cachorro
pequinês. Nos anos 80, eram a paixão das vovós, mas creio que foram
substituídos por bichons frisés, poodles e pugs. Olhinhos esbugalhados, focinho
achatado, pelos longos e latido ardido eram a marca registrada dessas fofuras.
Até seu nome parece ter perdido no tempo a própria referência, pequinês, “de
Pequim”, capital da China, depois que começou uma moda boba por aqui de dizer
que a capital da China, assim como se diz em inglês, é Beijing. Para mim, ouvir
“Beijing” vai sempre me remeter ao delicioso docinho de festa, feito de coco e
leite condensado – e a capital da República Popular da China vai continuar
sendo Pequim!
Antes de ser da minha mãe, Fofo fora de Dona
Bia, uma vizinha muito simpática, já perto dos sessenta anos de idade. Vivia
numa casa simples no início da rua, ela e mais doze cãezinhos pequineses. Por
dificuldades financeiras, agravadas pelos gastos com suas mascotes, viu-se
forçada a mudar-se da vizinhança para uma casa ainda mais modesta. Foi então
que ela teve de se desfazer de metade dos seus companheirinhos.
Um deles, Fofo, ficou com a minha mãe, que só
aceitou o cãozinho porque percebia a aflição de Dona Bia e tinha estabelecido
com ela algum grau amizade. Foi triste o dia em que Dona Bia veio nos trazer o
Fofo. Ela chorava copiosamente, foi uma cena muito, muito triste. Ela o deixou
conosco como quem deixa para trás um filho.
Nos primeiros dias em minha casa, Fofo sofreu
muito, chorava sem parar, uivava a noite toda, parecia chamar, em cachorrês
fluente, sua antiga dona, que ainda permaneceu na vizinhança por mais algumas
semanas até mudar-se definitivamente. Depois desse período, Fofo afeiçoou-se à
minha mãe e passou a estabelecer certa rivalidade comigo. Era do tipo de
cachorro ciumento, exclusivista. Acho que ele me via como um cão maior, um
rival. Mesmo assim, era um bom cãozinho e eu me afeiçoei a ele, apesar de ele
ser arredio comigo.
Posso dizer que devo minha vida a esse cãozinho
Fofo. Eu costumava brincar numa rua sem asfalto, que era uma espécie de
continuação da minha – que era asfaltada e passagem de linhas de ônibus; por
isso que, na minha rua propriamente dita, não dava para brincar, e até hoje é
assim. Mas nessa continuação, que tinha pedregulhos em vez de asfalto e outro
nome, a maioria das brincadeiras era possível.
Naquele dia banal, mais um em que eu brincava
naquela ruazinha, vi Fofo aproximar-se, ele parecia estranho. Não costumava
seguir-me, mas deu um jeito de passar por um buraco na cerca de casa para ir
atrás de mim. Ficou rodeando-me, parecia querer dizer-me alguma coisa.
Como a hora do almoço já se aproximava e eu
estava ficando com fome, decidi voltar para casa. Um percurso curto, uns 50
metros, se muito. No entanto, bem no meio desse trajeto, havia uma rua a ser
cruzada. Uma rua de bairro, uma rua pequena, quase sem movimento, Juvelina
Ferreira de Assis. Eu passara por aquele cruzamento tantas vezes que era como
se eu passasse da sala para a cozinha de casa.
Eu já estava prestes a pôr o pé no cruzamento
quando Fofo, inexplicavelmente, colocou-se na minha frente em desabalada
corrida, passou por mim e quase me derrubou, não tive como não interromper o
passo. Foi quando senti algo grande e muito rápido passando pelo meu nariz e
pelas pontas dos meus dedos do pé, fiquei com uma sensação de calor,
principalmente no rosto. Praticamente no mesmo instante, ouvi um som
agonizante, um gemido de profunda dor, que me gelou a alma. Uma Kombi branca,
em velocidade altíssima, havia passado com as duas rodas esquerdas por cima de
Fofo. Eu me desesperei e pensei que fosse o fim dele.
Um rapaz muito mal-encarado desceu do
veículo, olhou displicentemente para tudo o que tinha ocorrido, fez uma cara de
profundo desprezo quando viu que tinha atropelado um “mero” cachorro, subiu na
Kombi e foi embora. Fofo ficou muito mal, posso ver a carinha dele na minha
memória até hoje, com a boquinha ensanguentada e os olhinhos de profunda dor e
resignação. Meu colega Romero, um menino da mesma idade que a minha e de
família gaúcha, tinha presenciado tudo e chamou sem demora minha mãe, que veio
em nosso auxílio.
Como nem sonhávamos em ter dinheiro para
pagar veterinário, ela providenciou faixas, talas e ataduras. Fizemos curativos
em Fofo, mas não acreditávamos que ele sobreviveria. Porém estávamos enganados.
Passados alguns meses, ele se recuperou completamente e até a andar voltou. Não
consigo imaginar por que motivo nem como, mas Fofo sabia que aquela Kombi era
para mim e me salvou a vida. Fofo foi, sem dúvida, mesmo com toda a sua
rabugice, um anjo de quatro patas.
Por falar em Romero, um garotinho ainda mais
magro que eu, de cabelos escuros, encaracolados e óculos de lentes grossas,
acho que ele foi o primeiro ambientalista ou ecologista de que eu tive notícia,
embora não soubesse disso naquela época. Era rara a ocasião em que eu brincasse
com meus tatus-bolinhas e minhas minhocas sem que ele aparecesse para
recriminar a mim e a qualquer outra criança que estivesse comigo.
Um dia, minha mãe me chamou e me pediu que
fosse ao mercado. Eu deixei os bichos e os apetrechos da brincadeira – vela,
palito e fósforo – ali, disponíveis, à minha espera, pois eu não pretendia
demorar a retornar. E qual não foi minha surpresa ao ver Romero sucumbir ao
divertido sadismo daquela atividade tão pueril? Foi engraçadíssimo
surpreendê-lo e gritar: – Até tu? E agora, Romero? |
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