Um encontro incomum |
Escrito por Umba Hum | |
21-Fev-2018 | |
A cidade é como um mosaico. As longas avenidas cruzadas por ruas secundárias, que se entrecruzam com outras vias sem importância e voltam a encontrar largas avenidas. Ruas com nomes estranhos: – Corifeu Azeredo Marques, Salim Farah Maluf, Agamenon Magalhães... – e nomes que apenas são procurados no guia: Bem-te-vi, Sabiá, Garça, Anjo Custódio... As marginais, margeando os rios Pinheiros e Tietê, limitavam a cidade outrora. Hoje, pontes, muitas pontes (do entroncamento da marginal Tietê com as rodovias Dutra, Fernão Dias e Airton Senna até a Av. Interlagos), ligam vidas e acontecimentos. As artérias articulam pontos distantes: Leste, Sul, Centro. Carros, muitos carros, motos, caminhões, ônibus, serpenteiam pelas artérias, às margens nas marginais, alcançam uma alça de uma ponte e passam para o outro lado. Num trânsito constante e inebriante.
À noite a cidade, com luzes cintilantes vista do alto, até parece o Universo. Vista do alto, de um avião se confunde com uma galáxia de forma indefinida: a gravidade, que atrai, nela não tem sentido. Luzes de prédios, de postes, de faróis de semáforos brilham e iluminam os perigos de cada dia em cada esquina.
Viver é perigoso na grande cidade. A cada momento rola um movimento. Garotos e garotas nos cruzamentos, inadvertidos, vendem qualquer bugiganga, limpam para-brisas, fazem manobras circenses...; melhor, ameaçam com o perfil dos que foram colocados do lado de lá da margem. O movimento é livre: pedir, limpar para-brisa, prostituir não é crime...; um verdadeiro shopping em cada esquina; é um lance de dados ser ou não abordado.
Cruzar de carro ou de moto uma rua à noite a partir de certo horário é perigoso. Há os garotos, as garotas, o semáforo que, verde, indica passagem e, vermelho, recomenda-se passagem igualmente (uma lógica curiosa: a sinaleira é só um monumento na cidade à noite; serve para apreciação, como as esculturas de Brecheret no Ibirapuera...). Tantos carros, tantas motos num mesmo cruzamento; eis o risco da vida agitada e perigosa.
No meio da noite, um homem (sim, há sempre um homem, uma mulher, uma criança, um velho, uma velha...) olhava, da janela do apartamento em que mora, a velocidade dos carros, a movimentação de motos, de pedestres de todo tipo de gente... Ele olhava – como olhava todos os dias (e não há razão para saber por que, pois não há o porquê) – para o cruzamento que, a partir de certa hora, tem movimentação amena.
Há um cruzamento não distante do apartamento, de onde se vê casas térreas...: é uma área residencial...; duas quadras antes do apartamento, talvez um comércio clandestino, duas ou três quadras após o semáforo, talvez uma grande avenida, talvez a marginal.
Tudo foi tão rápido que o homem no apartamento não conseguiu entender direito o evento singular. A moto derrapou no asfalto, faíscas pelo atrito foram vistas. Mas tudo foi muito rápido.
Apesar das luzes, de todas as luzes, à noite a noção de espaço é reduzida. O homem não percebeu quando um jovem levantou-se e dirigiu-se ao condutor, ou condutora, do carro. De onde estava, o homem presenciou uma discussão. O jovem da moto falava alto em tom de ameaça. Gritava, colocava a mão na cintura como a indicar que debaixo da roupa havia uma arma.
Do apartamento não era possível saber o que o jovem falava; apenas seus grunhidos eram ouvidos. Nesse lapso de tempo tão pequeno, o homem no apartamento não se deu conta se foram 20 segundos, 40 segundos, 60 segundos... – o homem do apartamento gosta de progressão aritmética. Para o jovem da moto tomado de fúria, o tempo correu como o movimento dos gases: aleatório. Para quem estava no carro, o tempo foi o do pesadelo: “Esse cara surgiu de onde, meu Deus! O que está acontecendo?”.
Assim o homem do apartamento imaginou como se sentia o dono, ou dona, do carro: um acontecimento insólito, como nos filmes de David Lynch (o homem no apartamento, com a TV ao fundo da sala, via “Estrada perdida”): por um momento sentiu-se no absurdo, na estranheza do mundo.
Mas o estranho sempre se pode revelar mais estranho na absurda estranheza. O dono, ou dona, do carro, devia estar apavorado, ou apavorada, pensava o homem do apartamento, pois nesse lapso de tempo permaneceu estático, estática. O carro não se moveu; não se ouviu voz de dentro dele.
Mas o estranho sempre se pode revelar mais estranho porque uma moça surgiu das trevas da noite e gritou: “Moça vai embora pelo amor de Deus! (Ah, agora o homem do apartamento passou a saber que o carro era dirigido por uma moça”. Talvez houvesse mais alguém no carro, mas palavras foram dirigidas a quem dirigia). “Eu seguro ele, mas pelo amor de Deus, moça, vai embora logo daqui!”.
O tempo, para o homem do apartamento, corria em progressão aritmética. 30 segundos, 60 segundos, 90 segundos....; a moça que surgiu sem que nem por que segurou o jovem da moto, que se agitava e vociferava... Nenhum outro carro cruzou o cruzamento nesse ínterim, nenhum transeunte foi visto pelo homem do apartamento.
O semáforo? O homem também não sabe se voltou a ficar verde, se ficou vermelho novamente. Essas coisas também são estranhas. Em certos momentos parece que o universo se encolhe à estranheza. Num lapso de tempo o mundo para na cidade sempre em movimento, na cidade cruzada por mendigos, bêbados, prostitutas, ladrões de ocasião..., garotos e garotas que ameaçam nos semáforos...
Assim parece ser. Um carro parado, com uma moça que o dirige e talvez mais alguém, uma moto a uns vinte metros do outro lado da rua, um jovem motoqueiro, talvez machucado pelo choque com o carro, uma moça desesperada, que grita e o homem do apartamento, que não tem ideia da razão do grito.
Do apartamento, num tempo indizível, o homem, apenas observava: imóvel. O carro acelerou, os pneus atritaram o asfalto, o carro disparou, cruzou o cruzamento. O semáforo? O homem não sabe. Talvez estivesse vermelho. Não importa, se não houver câmara do CET naquele cruzamento.... Não houve, isso sim, outra moto no cruzamento.
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Atualizado em ( 21-Fev-2018 ) |
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