O silêncio e a misofonia |
Escrito por Jamil Alves | |
12-Set-2018 | |
Crash, vrum, nhac, zumm, clap clap clap, pow!!! E dois ou três dias de uma forte sinusite mal cuidada silenciaram o barulho irritante das onomatopeias cotidianas. Olhos irritados, nariz, garganta, aquele caos. Até que, ao amanhecer, o silêncio, a surdez. Nada do incômodo som da descarga do vizinho, nem sinal do barulho enlouquecedor do caminhão do lixo subindo ladeiras nas vias da Mooca. Na rua paralela à Avenida Paes de Barros, nada do zum zum das buzinas dos motoristas, mais irritados com o engarrafamento que com o fato de terem de ir trabalhar tão cedo. Durante boa parte da manhã, foi muito gostoso estar surdo; havia um estranho prazer em não ouvir. O estranhamento inicial foi logo substituído por uma sensação de paz e de relaxamento. Nada do chinelo fazendo ruído enquanto passava do quarto para o banheiro. Nada do barulho plic plic plic da torneira que já vinha pingando há algumas semanas.
Naquela situação, desconfortável era a respiração ofegante e pela boca, apenas. De resto, todo aquele silêncio celestial foi recebido como um inesperado presente, uma folga do estresse que o excesso de estímulos sonoros gera em todos nós. Era uma quinta, véspera de feriado pátrio. Avisou no escritório, por e-mail, que precisava ficar em casa. Escreveu e enviou seu texto e depois sorriu. Fora acometido por uma súbita surdez, mas isso não lhe parecia ruim.
Aquela quinta era um dia de privilégio, de profunda calma. Passou a manhã e o início da tarde experimentando o prazer do silêncio, de não ter de ouvir idiotices nos elevadores, de não precisar escutar gente falando alto ao telefone. Comemorou não ter de escutar o barulhinho tec tec tec que os celulares fazem quando as pessoas escrevem mensagens em público sem o devido bom-senso e a consideração ao outro de desativar o som do seu aparelho enquanto digitam.
Um dia realmente fora do comum foi se desenrolando. Nada de barulho de motos com motores envenenados, nada do estrondo das freadas bruscas da hora do rush, nem tampouco a gritaria das novelas e dos filmes na tevê. Tudo preparado para um fim de semana prolongado de agradáveis e silenciosos cochilos.
Ao longo dos dias seguintes, sua escolha de não ir imediatamente ao médico foi sendo cada vez mais percebida como um prêmio autoindulgente. Foco, atenção, silêncio, sossego. E nessa “vibe” chega o domingo, novamente dia de regozijante silêncio. Nada de barulho de espirros, nem de tosses, nem muito menos de alguém fazendo clic clic clic freneticamente com alguma caneta (todas as canetas deveriam ser feitas no modelo com tampa, sem botões para serem apertados!). Na segunda-feira, o mundo prático e real o chamou para fora da sua relação de idílio com o mundo sem som e ele foi, então, ao otorrino: fim do problema da surdez provocada pela forte sinusite. *Misofonia = distúrbio de ordem neurológica em que estímulos auditivos são confundidos e superestimados dentro do sistema nervoso central. A palavra é formada por “miso” (aversão, ódio) e “fonia” (som), o que significa que se trata de uma reação forte a determinados sons, com comportamentos de profunda irritação e até mesmo de ódio e descontrole emocional. |
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Atualizado em ( 12-Set-2018 ) |
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