Leitoras de Rachel de Queiroz |
Escrito por Umba Hum | |
21-Mar-2020 | |
Depois de passarem pelos trâmites fiscalizadores – o popular check-in, a travessia dos pertences pela esteira... –, aguardarem no saguão que dá acesso ao portão 18, em frente à cervejaria Devassa, ouvirem chamada para o voo – “Passageiros do voo 3512 LATAM, marcado para as 14h50, embarque imediato no portão 18” –, entrarem no avião e sentarem-se em suas respectivas poltronas – “Passageiros, vamos decolar, o voo... foi autorizado...” –, elas perceberam portarem para viagem entre Cumbica e Guararapes (o nome evoca a batalha, os holandeses, Nassau, o Catatau de Leminski, Frans Post, Albert Eckhout...) o mesmo exemplar para lerem durante o trajeto: O Quinze, de Raquel de Queiroz. – Você trouxe algum livro pra ler na viagem? – perguntou ela à amiga.
Enquanto abria a mochila – um produto artesanal feito de fios de algodão que foram pintados em diversas cores e uma vez entrelaçados dão ao tecido um jogo de cores psicodélicas –, a amiga subtraiu edição da José Olympio, 1977, de O Quinze. Livro em bom estado; embora com sinais de ter sido frequentemente manuseado...
– Meu pai me falou pra eu ler a Raquel e me deu...
Ela se ajeitava na poltrona e olhou com surpresa o exemplar da amiga; deu em seguida leve sorriso e exclamou: – Nossa! Pedi prô meu tio pra me dizer que livro podia ler nesse tour pelo NE e ele me deu pra ler também O Quinze. Veja, não é uma coincidência?
– Centenário de nascimento da Raquel e ela está em todas...; no colégio a gente lia os romances da geração de 30: Jorge Amado, José Lins, Graciliano, José Américo de Almeida...; liamos também Machado, José de Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, Bernardo Guimarães... Você assistiu a Almanaque esses dias?
– Praticamente não vejo TV; documentário assim legal..., mas não tenho paciência... – procurou ela se desculpar pelo desconhecimento.
Os pais dela não lhe deram uma formação cultural como gostaria, com que pudesse falar sem certa insegurança sobre livros, romances, poesia. Adulta, conhecida nos circuitos de artes, sempre se expondo em eventos de cultura, vernissagens, exposições, mostras, palestras, bienais, sabia o quanto lhe carecia não ter tido um ambiente favorável à leitura. Ressentiu-se dessa carência nos meses que passou em Paris, na Cité des Arts, num intercambio para aprimorar sua formação em Artes Plásticas. Seus pais viviam o mundo da coiffure, e nesse mundo não tinham tanto tempo para preocupações com literatura. Evangélicos, no entanto, freqüentavam a igreja Betesda (lugar da misericórdia divina no Evangelho de João, capítulo 5, Jesus Cristo realizou no reservatório de nome Betesda um milagre...). Na igreja elas se conheceram. O pai da amiga era o pastor da Betesda. Havia estudado filosofia e teologia e era dotado de grande cultura bíblica, além de uma curiosidade literária pantagruélica. Diferentemente dela, a amiga, embora tenha se revoltado na adolescência e largado a faculdade, teve uma formação humanística e religiosa da qual não se afastou. Ela, não encontrando nos pais referência para assuntos literários, conversava sempre com um tio, que era advogado e sempre lhe indicava livros para ler. Ao saber que a sobrinha passaria alguns dias no NE, com passagem em Quixadá, achou seria proveitoso ela saber um pouco sobre a região por meio da leitura de Raquel. Para ele, a literatura guarda a alma que se esconde numa paisagem que aos olhos incautos está abscôndita.
– Eu também não sou assim fanática por TV; você sabe, viajar na TV tá por fora; por acaso naquele dia... – murmurou a amiga.
A amiga, que já havia lido Vidas secas e que se encantara com o filme de Nelson Pereira dos Santos, não teve o mesmo entusiasmo com o filme do Jurandir de Oliveira, que fizera a adaptação de O Quinze. Conhecia, portanto, a trama, os prováveis motivos de o pai ter lhe... Na conversa com ela, contudo, fez questão de dizer que só com o livro estava entrando no universo da Raquel de Queiroz. O filme, para a amiga, era uma viagem muito mais turística que social. Em conversa com amigos, na verdade, revelara não gostar de filmes da Retomada: preferia o Cinema Novo.
– Viajar para o NE sem conhecer a arte, a literatura é como morar nos Jardins e não ir ao Iguatemi – disse a amiga.
A amiga fez essa observação com o intuito de provocar. Havia optado por um estilo de vida em total dissonância com o mundo dela. Depois de abandonar o curso de Publicidade e Propaganda, pegou a mochila e pôs o pé na estrada até se estabelecer na Chapada Diamantina, em contato com a natureza, numa comunidade alternativa onde fazia artesanato, lia muito e via com desconfiança o consumismo turístico. Os ares do movimento hippie se fazem sentir fortemente na maneira como encara as coisas, daí o aposto; como lançar uma faísca estranha em quem de algum modo assumia o discurso reconhecido socialmente que a distinguia da etiqueta artística, quando ela própria, a amiga, se via como verdadeiramente artista.
– Sim, ... se você diz, sou artista... – ela disse, como se de modo irônico pusesse em dúvida a etiqueta; e, depois de leve pausa, prosseguiu: – mas, você sabe como vejo a arte e sabe que vejo a arte como uma maneira de expressão do mundo, das sensações vividas...
O avião já havia levantado voo. Ambas sequer notaram a paisagem de Guarulhos, não se deram conta se, ao cair da tarde, a noite já havia surgido; não sentiram uma leve turbulência que reservou leve tensão ao restante dos passageiros. E aquela conversa, marcada inicialmente pela surpresa, ganhava ares de estranhamento e exibia as diferenças entre elas. A amiga mantinha um ar meio presunçoso, carregava um fundo subliminar de crítica às escolhas que ela fizera. Escolheu ser artista, mas se isso implicava num exercício de liberdade para a criação, por outro lado a mantinha presa a códigos sociais que diziam como seguir para a bem-aventurança no mundo das artes.
– Às vezes, não é preciso justificar muito. Mas acho que você fez uma escolha radical e perde muito com isso. Você quer que eu diga que arte é o que você faz, artesanato, pois você não tá presa a nada além de sua criatividade... quer dizer, o verdadeiro artista, a arte verdadeira está no espontâneo, sem nenhuma regra. Não concordo com essa visão tão radical. Tem coisa legal, claro, na vida alternativa, mas tem também isso... esse radicalismo.
– Não esquenta! – Retorquiu a amiga.
– Não é um comício...; parece que você se incomoda...
Nesse momento ela expressou enfado com o rumo que a conversa estava tendo. A amiga continuou a falar, mas ela não tinha a atenção presa ao que chegava a seus ouvidos. Voltou-se então para o livro. Não o havia retirado de sua bagagem, mas não via a hora de a amiga para de falar para ela entrar no universo da Raquel de Queiroz, na edição de 1993 da Siciliano.
– Tá... tá... sei... – ciciou ela, sem ter acompanhado o que lhe havia sido dito.
Sem entender direito o que a amiga havia falado antes, respondeu como se sentenciasse aquele momento:
– Não sei... a leitura de um mesmo livro revela experiências totalmente diferentes, como se fossem livros diferentes, como se a coincidência de hoje, do mesmo livro que a gente tem aqui no avião, nós duas com O Quinze, e isso fosse apenas um grande mal-entendido.
|
|
Atualizado em ( 21-Mar-2020 ) |
< Anterior | Seguinte > |
---|
Início |
Nossa Onda |
Música Latina |
Colunistas |
ETC |
Comes & bebes |
Sons & Shows |
Telas & Palcos |
Letras e livros |
Última página |
Contato |
Newsletter |
Receba as novidades da Onda Latina no seu e-mail. |