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Um dia como outros, estranho e quente. É verão. Ele saiu de casa para uma consulta, para admissão em novo trabalho. Ao sair de casa, consultou o waze e chegou à Rua Dr. Araújo de Melo, 174, na Vila Mariana. Saiu hora e meia antes da consulta, marcada para as 15h30, e chegou às 15h00.
Estacionou o carro em uma rua paralela à do consultório. Entrou e procurou a recepcionista, protegida atrás do balcão. Ela lhe pediu a identidade, fez anotações e disse para aguardar.
Recolheu-se então ele a um canto da sala, sentou-se e olhou os rostos presentes. Da TV ligada na Globo via-se a novela vespertina reprisada.
Em lugares assim, muitas pessoas cruzam de um lado para o outro; quem entra vê muitos rostos. Todos sentados à espera da chamada. Os olhares se entreolham, absortos, vazios. O dele é apenas mais um que esconde histórias, sentimentos...
Para ele, como provavelmente para os outros, o lugar é um claustro, no momento da espera. Ele pegou entres seus papéis duas folhas em branco e começou a rabiscar...
“Muitas pessoas na sala de espera... Olhares que não são meus deslocam-se de um lado para o outro, procuram um ponto fugidio.... A espera...
Todos esperam e eu, aqui, escrevendo. Penso em Goya, ao ver os rostos que preenchem o espaço: ‘rostos traçados por Goya em seus momentos inspirados...’
E assim, depois de separar um pedaço de papel, tomar a caneta para distrair minha atenção nesse espaço de tempo morto, noto o rapaz à minha frente. Com a boca aberta, ele ressoa, dorme como se fosse na cama; sua cabeça pende para trás da poltrona, que é ocupada por mais um rapaz e uma mulher; as pernas estão encolhidas; como o rapaz do lado, ele é moreno, tropical, como queiram: ambos se vestem como jovens da periferia que ouvem Rapper – calça jeans com cavalos bem caídos, camisetas largas, tênis, bombeta com pala para trás... Outros conversam. Do que falam? Ouço apenas as vozes, indistintas. O burburinho. Sempre o burburinho.
A jovem recepcionista recebe os rostos, dedilha as teclas do computador. Mais um rosto chega. Uma moça, que ouve da recepcionista: ‘é só esperar...’. Em seguida, a moça, esbaforida, senta-se ao meu lado. Enquanto se ajeita na cadeira, ouço uma voz: “Rodrigo!”
Rodrigo levanta-se e caminha para um cômodo no qual não consigo enxergar a quem ele se dirige, e assim eu continuo a escrever. As vozes na sala me impedem de ouvir quando a voz que vem do cômodo onde Rodrigo entrou chama outro nome. Rodrigo sai. Entra um rapaz, moreno como Rodrigo, como o que à minha frente a pouco ressoava...
Mais rostos entram na sala. Uma senhora de cabelo branco ao lado de uma jovem. Parece ter vindo juntas. A jovem está suada; a senhora senta-se, a jovem permanece em pé. Enquanto escrevo, a jovem me olha. Imagino que minhas linhas lhe despertam curiosidade. A sala está lotada. É um espaço pequeno.
Sai o rapaz de tez morena. Entra Moacir; este um pouco menos jovial, talvez tenha embalado alguns momentos da vida ao som de Amado Batista. A porta permanece aberta. Ouvem-se vozes. Percebo uma voz feminina que dialoga com Moacir. Deve ser a médica.
Sai Moacir, entra Adélia. A porta é fechada. Num espaço de não mais que 12 metros quadrados dez rostos se olham na tarde quente e modorrenta.
Ouço a voz dizer: Humble! Meu relógio marca 15h45.
É a minha vez. Levanto-me, entro e encontro a médica. Uma mulher com gestos protocolares, de tez clara, a tinta dos cabelos vencida, vestida no estilo bicho-grilo (os médicos têm ademanes similares; ela destoa, com perfil de que faz compras na Praça Benedito Calixto). Ela não me olha, apenas pergunta: qual é a empresa? Sim, imagino, todos ali estão para serem contratados... Eu lhe respondo.
Ao que ela indaga: Professor? Sim, professor! Eu respondo.Em seguida, ela pergunta se tenho problemas de saúde. Digo que não. Ela pede para eu me sentar numa cama ao lado, tira minha pressão, diz que está normal – 11/9 –, coloca o estetoscópio no meu peito, pede para lhe mostrar as mãos.
Então ela volta, senta-se à mesa, carimba um documento e me pergunta se tenho boa voz. Com dicção tonitruante, digo: sim, tenho... Ela diz que posso começar a trabalhar. Enquanto ela carimba um documento e fala uma ou outra coisa de que não me recordo, tenho os papéis à mão e escrevo rapidamente as últimas linhas. Recebo um documento para entregar na nova instituição, assino uma cópia, que deixo com ela, olho-a, dou um leve sorriso e digo, como se estivesse pensando: ainda bem que foi rápido, tenho de dar aula hoje às 19h00...
Eu me levanto, viro as costas, saio da sala e sequer noto os rostos que ficaram”.
Ele então foi ao estacionamento, ajeitou os papéis com os traços que rabiscara, olhou o relógio, que marcava 15h55, e tomou, maquinalmente, o caminho de volta para casa.
lichvaladpioli.cf llustração: Sala de espera – Franklin Valverde
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