Em Paris com Sabato |
Escrito por Umba Hum | |
18-Jul-2021 | |
Desde a adolescência, quando ainda estava no antigo colegial, tinha especial pendor pelas letras, embora, adulto, tenha feito jornalismo e se dedicado à cobertura de festivais de cinema: trabalhava como crítico e assinava uma coluna mensal na Revista de Cinema. A literatura, de qualquer forma, sempre lhe esteve presente; e era particularmente fascinado pelos argentinos; por eles, tinha verdadeira obsessão. Não lia com o mesmo prazer – ou se interessava com a mesma paixão –, outros escritores latino-americanos do boom literário dos anos 70. Seus amigos adoravam Vargas Llosa, García Márquez, Neruda. Não tinha ele, de fato, apreço por Llosa e Conversa na Catedral lhe era tão maçante que nunca concluiu a leitura (um amigo, o Cido, não cansava de citar A guerra do fim do mundo; e ele questionava: “para que ler Llosa se temos Euclides da Cunha?”); respeitava García Márquez e lera seus romances mais conhecidos – Crônica de uma morte anunciada lhe servia de tirada para desgraças eminentes –, mas o via principalmente como produto de curiosidade eurocêntrica para o exotismo latino-americano; Neruda, por sua vez, lhe era tão só um ícone criado pelas esquerdas na noite dos generais que tristemente irromperam no continente. A literatura argentina era outra coisa e guardava na lembrança a primeira vez na qual ouvira falar em Jorge Luis Borges, quando tinha quinze anos, no começo dos anos 80, numa matéria jornalística na televisão. Em diferentes momentos da vida, sempre tinha um escritor argentino ao lado. Nas viagens que geralmente fazia para eventos de cinema, levava na bagagem Sarmiento, Macedonio Fernández, Robert Arlt, Ricardo Piglia, Borges, Cortázar, sendo este por quem mais sentia admiração, cuja leitura o deixava perplexo e se renovava de tempos em tempos (apesar da imensa admiração por ele, achava infantil O jogo da amarelinha; sentia um artifício tolo ler esse livro em variadas sequências). Mais recentemente, tocado pelo fervor midiático com o lançamento de O Passado e História do pranto, leu Alan Pauls. Mas a leitura, passada a curiosidade inicial e uma impressão positiva, lhe deixou a sensação de que novamente estava diante de um produto de mídia (folheou História do cabelo e deixou intacto História do dinheiro). Pauls – vira entrevistas dele em vários canais de televisão – parecia um escritor que antes de ser escritor pensava que era escritor e isso o decepcionava, mesmo vendo nele o forte desejo de inovar com uma narrativa que fugisse a lugares comuns. Com esse gosto literário peculiar, bastante previsível que, em viagem que faria a Paris, separasse livros de escritores portenhos. Lembrou que há anos não lia Octaedro, de que relia quando podia o conto Os passos no rastro; separou, também, As armas secretas: As babas do diabo remetia à capital francesa, com as andanças do narrador (de um dos narradores...) em volta da Conciergerie, da igreja de Sainte-Chapelle, na Ilê-de-France. Assim, armado com Cortázar, rumou a Paris.
Foi a Paris convidado pela Cinemateca Francesa, para um evento em homenagem a Glauber Rocha (falaria sobre seus filmes no exílio, muito mal recebidos na França, e defenderia que a crítica havia escolhido a senha errada para julgar Glauber fora de suas raízes nacionais). Nunca havia ido antes à cidade fetiche para turistas que se exibem em fotos ao lado dos pontos turísticos. De fato, lhe causava irritação a hábito de fotografar com celular infindas imagens que, como o flash da máquina, eram vistas num clarão súbito. A Cinemateca fica na rue de Bercy e ele – como outros participantes do evento – ficou hospedado no Hôtel de la Tour Eiffel, na rue de l´Exposition. Uma van os vinha pegar na entrada do hotel – e, do mesmo modo, se servia para quem quisesse visitar o Louvre ou o Arco do Triunfo... No quarto no qual ficou, bem próximo da torre, da janela podia avistá-la em seu esplendor. Ele, contudo, tinha pouco interesse em visitar o monumento: “A torre está ali, como um paradoxo, símbolo do progresso, da era do capital, que simultaneamente coloca a França, outrora imponente, como potência de segunda linha...”. Ver a torre lhe passava a sensação de melancolia: algo que, de algum modo, é conspurcado pela multidão ao redor.
Diante do livro de Sabato, Paris, sua fala na Cinemateca, Glauber, lhe eram indiferentes. Pouco antes de cair no sono, pensou: “Os argentinos são perturbadores. Ernesto Sábato, o escritor, é ele mesmo personagem em Abadon, o exterminador. Perturba porque isso não é escondido do leitor. Mas o leitor deve saber que não se trata de memórias. Sábato não recolhe experiências vividas para oferecer ao leitor uma imagem do que ele fez ou viveu em uma dada situação. Se assim o fizesse, de modo pouco nobre estaria enganando quem o lê. Pelo contrário, pois há uma sublinha que o transporta para a ficção. Ficção que ocorre porque a fidelidade narrativa revela, justamente, que a verdade do que é narrado existe apenas como blefe. A linguagem é cheia de malícia, pois uma virgula casualmente deslocada, um ponto e vírgula ou mesmo um adjetivo muda significativamente o sentido com respeito à realidade crua do vivido expresso pela memória”. Havia tido experiência similar com Borges, cuja leitura do conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, na adolescência, o deixara paralisado por dias, pois jamais havia lido algo tão perturbador, em que fantasia e senso de realidade se invertem num mundo assombroso.
De Paris, quando os amigos lhe perguntavam da viagem, o que havia feito, o que tinha visitado, respondia: “num sebo de rua no Quai d´Orsay sequer notei o buquinista e, de forma totalmente imprevista, encontrei Ernesto Sabato”. Um encontro tão inesperado que tudo o mais teve menos importância. Cido, então, com suas citações inoportunas, para emular disse que seu Martín Fierro havia sido adquirido em Montevidéu. Ilustração: Ernesto Sabato - Franklin Valverde |
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Atualizado em ( 19-Jul-2021 ) |
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