Fazia já mais de meia hora e não tem qualquer dúvida: está acordado. Mas se mantém deitado. Não está, de qualquer forma, totalmente desperto. Tenta reunir forças para se levantar. Sente, contudo, o corpo pesado. A qualquer
momento entraria em estado hipnagógico, a sensação de estar flutuando, fora do corpo. “Que estranho, tive um sonho; vou tentar me lembrar!” Enquanto tenta, percebe que a percepção é fugidia no estado de vigília.
Desconfia, acordado, que está sonhando. Tem lapsos de sonho e quase no mesmo instante se dá conta de que por um lapso de segundo não esteve acordado. Num reflexo de vigília, então, e dá conta de que um segundo antes havia sonhado com a Bê, sua filha pequena. Sim, a Bê, sonhou com ela, ou, desperto, retém essa impressão. A imagem dela, entretanto, não lhe pareceu presente, teve apenas a sensação da presença.
Estão em algum lugar. Algum lugar, na verdade, acordado, lhe vem o pensamento de que no sonho havia o pensamento de não ter imagens, de não tem a imagem de onde estava. Acordado, pensa o pensamento que acredita ter tido no sonho. “Não tenho ideia de onde estou, do que faço aqui. Não tenho bem as circunstâncias de chegada, circunstância alguma.” Parece, no sonho, tem impressão, ter chegado num carro branco. Na verdade, não chegou, ou,
não tem a imagem da chegada, apenas conjectura, em vigília, que está ali porque chegou… Mas a chegada é só impressão, como impressão também que chegou com a Bê… ou, sua presença ao lado dela… A sensação de um carro
branco, então, lhe vem assim. Assim, não a imagem física do carro e sim a sugestão de que seria um Hyundai-Creta branco e que não teria acionado o alarme, embora não tenha se afastado do carro, ido para outro lugar. Ou
mesmo esse outro lugar, uma casa, um prédio, um comércio, uma praça, simplesmente não existia enquanto tinha presente o pensamento de um carro.
Mas, a ideia da presença do carro simplesmente desapareceu num lapso, como num corte abrupto, um jump cut godardiano no pescoço de Jean Seberg com a câmara num conversível circulando em uma rua de Paris, e estava presente agora a sensação de que precisava acionar o alarme.
“Vou acionar o alarme do Creta”. Mas no lugar onde o Creta estaria, vê a traseira de um Fiat Uno escuro. Ouve então, supõe ouvir por trás, a voz da Bê: “Você veio de Fiat?”. “Não! Não vim”. “Então cadê o carro?”. “Não sei. Levaram”. Entra em pânico. Melhor: lhe vem uma sensação indefinível de absurdo. Por que haveria de estar ali? Mas, a duração, o tempo entre não perceber a presença do carro e o sentimento de não ter acionado o alarme foi tão curto. Quer dizer, apenas o carro havia desaparecido de seu campo visual, pois esteve parado o tempo todo no mesmo lugar. Mas, um jump cut, se não, não era possível que alguém sem que percebesse tivesse roubado o carro sem poder ter visto. Olha para trás. Imagina olhar para trás. Não vê a Bê e sim um carro branco que parece projetar a presença do Creta. Só que essa sensação logo é substituída pela imagem do logo Toyota (marcas de carros, como sabonetes e cervejas… um sul-coreano e um japonês… entre eles um italiano… nunca o interesse em um carro além de que um carro não passa de um carro… mas o logo… só o logo, nenhuma forma além dele, desfaz o sentido da leitura de José de Alencar e a elite fluminense que circulava em tílburis, fiacres, cupês, cabriolets, landaus… na Pata da gazela um “fiacre aparece quando Horácio encontra Amélia e Leopoldo ajoelhados em oração…”). “Ali está!”, imagina dizer à Bê… Mentiu, mesmo sabendo que ela sabia que aquele não era o Creta. “Não é! Você viu se ele está atrás do Fiat?”. Um misto estranho de sensações. Como a Bê estaria ali sozinha? Como a Bê tinha certeza de que não era o Creta que estava vendo, mas não tinha certeza de que havia um carro atrás do Fiat? Como a Bê, tendo chegado ali de carro, não sabia não ter vindo num Fiat? Por que a Bê estaria sozinha ali? Esboça caminhar, mesmo vendo, imaginando, não ter carro algum atrás do Fiat, se a visão sob torpor no sonho não o enganava.
“Como vou explicar para ela que o carro foi roubado aqui?” Então, de sobressalto, naquele lugar indefinido, lhe veio a vaga lembrança, no sonho, da frente da casa de um amigo de adolescência que há anos não via. A rua, a pausa na calçada à noite e longas conversas sobre Jazz. Sim, o antigo amigo tocava saxofone e ficavam horas falando sobre músicos do Be Bop, do Free, Fusion, Eletric… Mas não havia razão para estar ali. Não tinha qualquer razão
para, com a Bê, parar em frente à casa de um amigo que praticamente esquecera, que não significava mais nada. Do mesmo modo, não havia razão para esconder dela que estava ali, que não havia razão alguma para estar ali.
Não havia razão para mentir. Ocorre que há a culpa por alguma coisa que fez.
“Um passeio à toa com a Bê. e vim parar aqui, e não avisei, e agora acontece isso. Por que esqueci de acionar o alarme?” Tenta se convencer de que há algum engano. Que o carro pode estar em outro lugar. A presença dela,
contudo, a sombra aterradora de que para ela a verdade é sempre mentira e “ela jamais saberia que estou aqui, mas, não tem agora como ela não saber e não sei por que não devo dizer que não sei por que estou aqui, nem sei, nem
tenho como saber se, depois da separação, ela e a Bê agora moram na casa que, lembro, é casa de um amigo que…”.
Sim, depois de mais meia hora girando na cama, com plena consciência de estar acordado. “Estava sonhando. Ela está dormindo, deitada ao lado. A Bê dorme no quarto dela. Esse o mundo real. Sinto que estou na cama. Não tenho
dúvida. A dúvida cartesiana, o segundo grau da dúvida, antes de ser posto diante do gênio maligno. O Hyundai-Creta cinza prateado está na garagem.
Tudo está em ordem, depois do pesadelo. Wes Craven… é cinema… é fake… ilusão, não há motivo pra pânico”. Sim, o mundo real. Tão real quanto o pesadelo, quando estava sonhando… e Wes Craven, no pesadelo, não era ficção, produto para consumo na indústria de entretenimento. Trêmulo, mas aliviado, levanta-se, cambaleando, e tenta fazer da Hora do Pesadelo obra de ficção, registrada em seu diário.
Ilustração: Franklin Valverde.