Numa terra sem tormentas nem igrejas de santos em prece, Hudea, do alto dos seus quatro anos de idade, levanta suas mãos e as junta acima da cabeça, bastante povoada por fios castanhos e lisos que vão pela testa até quase a altura das sobrancelhas.
Na imagem de Hudea, os olhos negros transparecem a desesperança e o medo da criança pequenina, naquele lugar onde meninos olham para o céu e estendem as mãos. São meninos que desejariam pular em poças d’água, mas a chuva não vem. Nunca vem.
Hudea é a prova de que Drummond estava certo e que os ombros suportam o mundo. Os olhos não choram mais e as mãos, mesmo as infantis, tecem apenas o rude trabalho. Há gentes nas terras alagadas suspirando por um raio de sol e outras procurando, no céu das terras secas, um sinal de chuva.
Na distante Síria, terra da menina Hudea, há uma guerra tola e sangrenta, como todas as guerras. Mas a Síria não é a única terra em que há conflitos, e nem a guerra de lá é a única. Guerras há de todos os tipos, e há também as Hudeas de cá.
Hudeas, por aqui, moram nas favelas das médias e grandes cidades, nas palafitas alagadas do Norte, nos casebres secos de pau-a-pique do Nordeste, nas roças, nos assentamentos, nas ruas e sob os viadutos. Nossas Hudeas esmolam nos semáforos sem estatutos que as defendam; cometem pequenos delitos; correm da polícia ou de seus exploradores como as gazelas assustadas fogem dos predadores.
Mas o que dizer, então, das Hudeas endinheiradas que habitam casarões, belos condomínios e apartamentos luxuosos? São pobres crianças sem atenção nem modos, sem afeto genuíno, lançados à própria sorte com seus joguinhos eletrônicos e suas babás aborrecidas.
São Hudeas criadas com cereais matinais e leite do bom, que desfilam em ambientes belos como campos normandos ou fluidas paisagens belgas. Alardeiam seus brinquedos novos e caros para atiçar a inveja dos amiguinhos como cavalos de raça que sacodem, com displicente orgulho, a dourada crina. São meninos que esperam em vão, em suas terras áridas, as poças d’água onde pulariam contentes.
No mundo de hoje, a dor do outro é estatística, e os avanços tecnológicos não encontraram, ainda, eco na pouca evolução moral dos indivíduos. As Hudeas sírias são também brasileiras, canadenses, finlandesas, nigerianas e tailandesas. As crianças, todas elas, são do mundo, do mundo todo.
Desejo que a imagem da menininha que o mundo viu hoje de mãos levantadas por confundir com uma arma a câmera que capturou sua imagem, cena peculiar dos noticiários, possa alimentar, ainda que com alguma utopia, nosso desejo de que esta poeira cósmica que chamamos de planeta seja um lugar belo e acolhedor, no qual as crianças levantem suas mãos para tentar pegar livros na estante ou, em sua fantasia de crianças que são, tocar as estrelas.
Para saber mais sobre Hudea: