Três dias antes do final do ano, enquanto observa calmamente forte chuva de verão, “estou com as datas como d´hábito, de final de ano, atrapalhadas. Tento fingir não perceber que percebo a contagem regressiva”; assim leio em seu diário, datado de 29 de dezembro de… – como se vê, nada diferente do que se repete há dezenas de anos… “algo como me enganar que não percebo e assim me enganar que me engano” (Deleuze, Giles, A lógica do sentido, paradoxo da regressão…).

“Pois, sei bem que toda vez que me engano, efetivamente, não quis me enganar, e só depois, enganado, percebo me ter enganado sem querer me enganar. Mas no caso, tendo atingido certa idade, as datas em fim de ano não são senão datas; conquanto, com elas, eu não esteja contaminado pela contagem regressiva” sentado ociosa e, em pânico, assustadoramente apavorado, “por que quando esta se anuncia sou tomado por apavorante surto de pânico; …”, e na sequência terrível sentimento de Angústia ao lembrar fugazmente Kierkegaard, Søren Aabye lido na adolescência.

A clepsidra (encontrada em Kamak, no antigo Egito, faraó-nado de Amenófis III, XV séculos atrás de Cristo…) lhe é uma bela imagem; a clepsidra na imagem de A morte cansada (Lang, Fritz, 1921, Decla-Bioscop AG, produzido por Pommer, Erich, roteiro de Harbou, Thea von, protagonista Dagover, Lil…). “conta gotas. Mais uma vez… e mais poucas vezes… e na memória tanto tempo atrás…” aquela vez em que jamais pensou tanto tempo atrás… – anotar em seu diário delírios, frustrações, sonhos, pesadelos, assombros, temores, tremores, palpitações, estremecimentos, espectros, sobressaltos, sustos, surtos, fracassos… impotência… tremeliques… pusilanimidades “em poucos dias apesar de tudo estarei enfim completamente morto” (Beckett, Samuel, Malone Morre, citação de memória da leitura da tradução de Leminski, Paulo, Brasiliense…) – ser uma vez a se contar – tanto tempo atrás… – a contagem regressiva.

 

Ilustração: Clepsidra, relógio de água – Franklin Valverde