“Chegar na porra dessa faculdade. Entrar nesse estacionamento. Baixo-astral do cacete no meio dessa mediocridade. Ter que aguentar papo furado. Sala dos professores. Corredores. Covil de imbecis. Assinar o ponto. Ir pra sala. E. Hoje é Clement Greenberg. Expressionismo abstrato. Me ajeitar pra falar de expressionismo abstrato. Pollock. Ahahahaaha Pollock, Pollock.
Alunos de merda. Um deles, sim, isso. Pega bosta de gato amanhecida, sangue coalhado de menstruação, vômito de vinho de péssima qualidade, catota fresquinha do nariz e joga tudo ao acaso numa tela, emoldura e expõe em galeria badalada da Pauliceia. O dono dela deve favores ao pai do dito cujo, que se acha demais fazendo arte abstrata. O jogo nas artes é assim. O pai é figura carimbada do jet-set. Nele circulam os tais conhecidos como ‘famosos’. Sempre visto nas publicações da Caras. Exibe influência social e fortuna de origem duvidosa”.
“Avisto Chedid dentro do carro. Conversei com ele sobre o ensaio que pretendo escrever sobre Cézanne. Vou enviar o texto para publicação no Digestivo Cultural. Já acertei com o Júlio, o editor do site, que me deu o deadline. É a primeira vez que encaminharei para ele um texto sobre um pintor. Uma novidade para quem publicou o que escrevi sobre o analista de sistema da CIA foragido Edward Snowden. Chedid é curador, crítico de arte, diretor do Museu…. Aqui na faculdade é bem querido pelos alunos. É bastante elogiado nas conversas que ouço nos corredores. Ele sempre para no mesmo lugar aqui no estacionamento. E tem um comportamento curioso: estaciona de ré, ao contrário de todos os outros professores, e ajeita a posição do carro milimetricamente na vaga. Ele tem um Peugeot 206 prata. Dá pra ver uma avaria na lateral direita. Deve ter, acho, ele, outras coisas para pensar além de levar carro para a funilaria. Mas é curioso o enorme cuidado para estacionar e de um jeito que mais o exporia a uma leve raspada quando estaciona seu Peugeot entre dois carros já estacionados. Vejo ao lado do carro dele uma Pajero preta. Provavelmente de professor do Direito. Sim, o ensaio: Cézanne – O mito do artista incompreendido. Hipótese de trabalho a ser desenvolvida: são acidentais as circunstâncias que fizeram de Cézanne a grande referência para a arte moderna”.
“Mas, vamos lá. Fazer o quê? Faculdade é lado B. Tive colega que dizia que é pra completar orçamento. Levo ele a sério. Mas sério mesmo é o Museu. Tem na verdade menos aporrinhação lá. E, de qualquer forma, quem manda sou eu. O jeito aqui é manter discrição. Pose de bom moço bem comportado. Aqui, professor de crítica de arte, nesse mundo de terra arrasada. Ofereço o mínimo pra não ter problema. Lá, Diretor de importante Museu da cidade mais rica do país. Aqui ninguém precisa me ouvir mais do que o mínimo. Ou seja: praticamente nada”.
– Bom dia, Chedid! Tudo joia?
– Oi.
– Hoje é puxado pra mim. Agora de manhã e à noite tem segundo turno.
– Vamos pra aula; fazer o quê?
“Putz. Picareta. Cara chato do cacete. Me procurou outro dia dizendo que tá escrevendo sobre Cézanne. Nem lembro direito o nome dele. Acho que é… Bah! Não vou perder tempo tentando lembrar. Tem muitos assim. Picaretas dão aulas em faculdades. Acho que nunca visitou o Orsay. Nunca vi o rosto dele no Museu aqui em São Paulo. Nunca deve ter visto uma tela original do Cézanne. País de merda. Dar aula em faculdade é porto seguro pra essa cambada de picaretas. Ascensão social pra quem vem da periferia. E aqui perfuma o ambiente com cheiro de bosta de cavalo nas botas. Cara viu se muito Clássicos da Pintura da Coleção Abril. Pra popularizar tudo bem a coleção exibida nas bancas de revisas. Os pobres veem a capa em destaque na prateleira e ficam sabendo que já existiu um Cézanne. Nem imagino, pode até ser, mas duvido que ele saiba que tem o volume da Tashen, do Hajo Düchting, e quer escrever sobre Cézanne. Cheguei na escada. Escada do caralho. Cinco pavimentos pra subir. Mas detesto elevador. Subo cinco andares e não entro em elevador. Por acidente ficar alguns segundos de cara com alguém que não fica quieto e puxa conversa sem pé nem cabeça e pra não criar mal-estar ficar com sorrisinho nos lábios e acenar que sim com a cabeça pra qualquer lorota que ouvir. ‘Hoje vai chover um bocado’. Ficar ouvindo isso? Sim, sim, também sei. Vi o céu carregado de nuvens”.
– Você leu Meyer Shapiro?
– Não!
– Ele escreveu ensaio sobre as maçãs de Cézanne; é bem conhecido; você deve ler; tá num livro dele sobre arte moderna nos séculos XIX e XX; também escreveu uma biografia reduzida do Cézanne; coisa didática, Shapiro é fundamental pra escrever sobre Cézanne.
– Li outras coisas dele; lembro de um catatau sobre impressionismo, que não é especificamente sobre Cézanne; faz tempo e preciso retomar.
– Tem que ler o básico, né? Historiadores, críticos, biógrafos. E não levo em conta o que o Merleau-Ponty escreveu; Ponty tá interessado em especular sobre a percepção, coisa de fenomenólogo, e não conhece nem tá interessado em questões da pintura.
– Entendo.
“O papo com Chedid foi legal. Chedid merece atenção. Toda atenção. Há nele algo de diferente com respeito ao mundo das ideias. Ele percebeu rápido o que quero com minha intenção de escrever sobre Cézanne. Interessante como ele menospreza o Merleau-Ponty. Sim, preciso ler o que ele sugeriu. O Cézanne de Meyer Shapiro. Mas se a conversa com Chedid foi legal, com meu chefe foi estranha. Às vezes, acho, sou disléxico e misturo ‘chefe’ e ‘capo’. Mas, sim, quis, claro, fazer média com o chefe. Mostrar meus interesses para ter ambiente legal de trabalho. E isso é sempre uma coisa em que o tiro pode sair pela culatra. A conversa com ele foi como um surto. E me frustrou. Ele é frio como pedra de gelo. Crio expectativa e depois um peso enorme nas costas, a sensação de desespero. Chedid não me desmontou, pelo contrário, e exigiu o que sei para mim é como primeiros passos no mundo das artes. O chefe? Senti como é arriscado tentar estabelecer qualquer cumplicidade intelectual com ele no ambiente de trabalho. O mundo dele é outro e bem prático, objetivo; nele não há aquilo que no Chedid dá para ver como ele se envolve com o pensamento. O chefe, certo, é muito antenado, rápido, descolado, nunca abaixa a guarda. Mas, e se percebe pela má vontade com a minha presença, ele não faz o tipo que discute ideias. Ele não revela tino para isso. Ele, de fato, pela atenção que me deu, dá pra ver que não teria a menor paciência para ler o que tenho em mente escrever sobre Cézanne. Chedid, sim, pode ser um canal de interlocução. Se, claro, ele entender que meu propósito é dialogar no plano das ideias com alguém que vai me ensinar muitas coisas. O texto não deixa de ser um pretexto”.
“Cézanne? Esse professor quer aulas de História da Arte? É o que parece com essa conversa fiada sobre Cézanne. O tonto deve imaginar que não li o Lattes dele. Ele não foi contratado pra dar História. Ele sabe que tem professor de História da Arte e vem com essa conversa fiada pra me agradar. Quer pegar aulas de um colega. Claro, não vai dar aula de História. Fico imaginando que bobagem quer escrever sobre Cézanne. Bem, na verdade tá aqui pra dar aula de Sociologia. E só. E os alunos não gostam do jeito dele falar sobre arte. É um imbecil que fica com provocação. Por enquanto tô segurando ele. Mas na primeira ocasião vou cortar as asinhas dele. Péssima contratação. Se pudesse voltar atrás. Chega aqui na minha sala sempre com pose de erudito de boteco. Não é o único. Mas é o mais metido”.
“O picareta! Vou fingir que não tô vendo, prô cara não me encher o saco. Se ele voltar com papo sobre Cézanne vou dar uma gelada nele”.
“Chedid fingiu que não me viu… Será? Só ia dizer que gostei do Shapiro. Peguei na internet em PDF o que ele me indicou. Vai ser útil”.
“Acho que Chedid está me evitando. Manias persecutórias. Sou tomado por elas. No estacionamento, não cruzo mais o cara. Acho que ele sabe o horário que eu chego e procura me evitar. Mas pode ser só desconfiança; não acho que ele mudaria de hábito por minha causa; não tenho essa importância para ele”.
“Caralho! Tô atrasado. Nesse horário vou cruzar com o picareta no estacionamento. Ah! Sim. Vou estacionar no outro estacionamento”.
– Chedid! Bom dia; é a primeira vez que te vejo aqui…
– Mudar de rota às vezes faz bem; vou dar uma palestra no Museu…
– Sobre o quê?
– Sobre natureza e jardins chineses…; tenho estudado como os chineses não separam arte e natureza no cultivo de um jardim; assunto é antigo; desde a dinastia Tang.
– Vai ser quando?
– Mês que vem; quando estiver tudo certo eu te aviso.
– Ótimo! Não esqueça de convidar os alunos.
– Pode deixar; mas será que vai alguém?
“Esquema geral do que pretendo escrever. Breve introito com o problema da idiossincrasia de outros artistas até chegar a Cézanne. Rejeição de suas obras e posterior reconhecimento. Realçar que Cézanne é um caso a parte. Isso se deve em função da enorme importância que artistas, críticos e historiadores da arte dão à sua obra no que se refere aos destinos das vanguardas artísticas no início do século XX. A importância de Cézanne está menos no equívoco de julgamento de seus contemporâneos do que em contingências que exigem a reavaliação de sua obra quando ele já havia morrido”.
“Embora esteja com o cotidiano bastante carregado, estou racionalizando bem meu tempo de trabalho. Hoje, por exemplo, evolui na escrita do texto Cézanne; pelo menos quanto ao propósito de terminá-lo até domingo. Esse o prazo que tenho. Estava angustiado com a possibilidade de me perder no texto. Nesse novo ritmo em que me encontro, não tenho o tempo que antes dispunha para uma maior elaboração. Isso, contudo, não quer dizer que sinta poder mostrar ao chefe. Acho que apenas o Chedid vale dar uma olhada. Posso fazer isso, inclusive, para ver como ele se manifesta. E assim procurar uma melhor aproximação com ele. Sim, pois ele me parece alguém que me possa ler com atenção, uma atenção que sempre esperei ter de alguém como ele”.
– Não tenho te visto esses dias…
– É; correria.
– Devo terminar até domingo…; aquele texto que te falei…; sobre Cézanne; conto com tua apreciação; é para meter o pau no que notar não esteja bem.
– Ahahaha! Sim, claro; lerei, com certeza!
“Cézanne com encadeamento que agora sim posso ficar tranquilo e mostrá-lo ao Chedid. Sei que nele há um desenvolvimento que Chedid não vai ficar com tanta frescura. Melhor, Chedid vai perceber pelas linhas o nível do texto. Mais, estou certo de que ele o lerá. Como ele disse que ia meter o pau, sei que quando encadeio um texto como gosto não é fácil assim meter o pau. Melhor, ele também sabe que como me expresso não tem nada a ver com texto acadêmico. Esse um ponto que ele não vai ficar com lero-lero. Há uma coisa, contudo, que preciso considerar. Escrever sobre sociologia da música segundo a Escola de Frankfurt e Adorno não é a mesma que sobre a pintura no século XIX. Sei que esse é meu calcanhar de Aquiles, pois meu trânsito na pintura não é o mesmo que com sociólogos da indústria cultural. Tenho certeza Chedid vai perceber isso de cara. Meus primeiros passos. Mas se ele se indispuser com algo mais estrutural ou carregado, sei que isso não será nada negativo. É assim que sinto. O chefe? Isso é certo, ele não saberá do texto. Não tem qualquer disposição para lê-lo”.
– Vou pela escada; não pego elevador…
– Faz bem; melhor que frequentar academia ahahahah…; e você, professor, também não pega elevador?
– Não! Para mim é tranquilo; o Chedid que tem medo de elevador; então vamos de elevador, chefe.
– A gente se encontra no quinto andar; enquanto vocês esperam o elevador chegar, já estou lá em cima. Ficar esperando elevador eu não fico ahaha… até.
– Professor, no semestre que vem você vai dividir as aulas de Sociologia com…; vai ficar só com as da manhã…; coisa de ajuste do horário.
– Sim, entendo…
“Meu, esse cara no meio da aula! Que merda! Era só o que faltava”.
– Imprimi essa cópia do texto sobre o Cézanne para você; vi no horário que você estava aqui; deixo então contigo, para quando você tiver um tempinho…
– Tô com um monte de coisas; tem uma palestra…, tô escrevendo um catálogo para uma exposição…; não sei quando te dou retorno…; correria atrás da outra, você sabe.
– Tudo bem, como tinha me comprometido te entregar…
– Tá. Pessoal, então, Greenberg…
– Tchau!
“Chedid, sim, um furo n´água. Mais um de meus ridículos. Ele não vai ler. Jamais vai haver situação para ele se manifestar. Ele não falará o que pensa e se fizer qualquer comentário será lacônico. Não tem qualquer compromisso, qualquer vínculo que o leve a se manifestar. Isso seria possível se, no fundo, ele sentisse que busco uma aproximação, ter alguém para compartilhar ideias do mundo da cultura. Mas ele não tem a mínima disposição para conversar comigo, a mínima; logo é bobagem forçar a barra e ficar perguntando, leu? Chedid tem a agenda dele e ela não me inclui. Tudo, de repente, se explica melhor no teatro da vida: ‘lerei, com certeza!’ Não, ele mentiu”.
“Ah! Essa bosta que o picareta deixou. Tudo bem. Na limpeza a faxineira recolhe o lixo. Essa merda de faculdade e encontrar esses tipos estranhos. É o fim da picada”.
“Sem nenhum retorno. Faz já três semanas. Texto Cézanne solenemente esnobado pelo Chedid. O sentimento de desajuste, de perda de sentido, de que não me integro, é cada vez mais forte. Ele não sabe, jamais saberá, que entre os fatores entre tantos é um dos que me levam a uma vida reclusa, isolada, do lado de fora do que acontece”.
Ilustração: Abstrato falso – Franklin Valverde