Entendo que no mundo do cinema há cineastas e há Jean-Luc Godard, ou JLG.
De Alice Guy-Blaché, passando por Germaine Dulac, Agnès Varda e chegando a Justine Triet, o cinema revelou cineastas extraordinários, geniais, geniosos tanto quanto embusteiros…
Godard sem problema pode se incluir na mesma categoria que Bergman, Bresson, Bogdanovich e tantos que assinaram filmes B…


Passados citados por JLG – O olho da história, V, livro de Georges Didi-Huberman, reforça o que assinalei sobre a diferença entre cineastas e Godard; ou seja, sem que imagino tenha sido o propósito, a leitura do livro me fez ver que há um fosso profundo que separa o que se convencionou chamar pelo nome de cineasta e o emblema JLG.
Didi-Huberman, filósofo, historiador da arte, crítico, para o mundo editorial francês acredito que “normal”, mas a nós (a mim ao menos) impressiona a proficuidade da produção de livros… (um reparo que para um “filósofo” não passa em branco: aceitar o jogo editorial e requentar assuntos para aquecer o mercado…).
Assim sendo, entre tantos cujos títulos pululam em “obras” em mais obras, escreveu extensivamente sobre IMAGEM e MEMÓRIA.
A esse respeito, a coleção, sequência, ou “sexalogia” com subtítulo O olho da história (o “olho”, óbvio, metáfora apropriada para o intento de Didi-Huberman).
Então “vejamos”: Quando as imagens tomam posição, vol. I; Remontagens do tempo sofrido, vol. II; Atlas ou o gaio saber inquieto, vol., III; Passados citados por JLG, vol. V. Todos aqui publicados pela Editora da UFMG, que agora negocia os volumes IV e VI da sexalogia hubermiana.
Certo, mas o quinto, sobre JLG: o cinema, filmes, JLG, são motivos para Didi-Huberman tratar do que lhe interessa: IMAGEM e MEMÓRIA (em termos estritamente metodológicos, um trabalho de campo…; em termos estritamente editoriais, uma marca, JLG, devidamente apropriada para vender…).
Um alerta: o leitor que não tiver boa base de leitura de autores como Malraux, Badiou, Schelling, Hegel, Benjamin – nesse caso especificamente as teses sobre o conceito de História – dificilmente terá repertório para acompanhar os argumentos desenvolvidos, questões de fundo do pensamento de Didi-Huberman (subliminarmente, pois as referências são expostas sem qualquer aviso, cotejar o vol. V com os outros da sequência hubermiana – reforço: JLG é motivo…).
Essa exigência em si seria desanimadora para quem se aproximar despercebidamente de Passados citados por JLG. Mas há outra tão desanimadora quanto. A exigência de ter visto, revisto e tornar a ver ao lado da leitura História(s) do Cinema, filme, “série” (?), de Godard que “motiva” argumentos e questões do pensamento de Didi-Huberman.
Um alerta 2: Ver História(s) do Cinema ao lado do livro não basta. É preciso ter toda atenção possível para as infindas alusões que Godard faz, em oito episódios, à “história do cinema…” e à história geral do século XX…; no filme, para Godard, o que significa o slogan “uma só história”? (no “só” a ambiguidade: uma ÚNICA história? ou só UMA história?) Ou ainda, precisamente o que significa, no filme, a IMAGEM de Godard criança, numa foto tirada à época da II Guerra, e a IMAGEM em contracampo de uma criança judia capturada pelos nazistas????
Certo! Mas, então, desaconselha-se a leitura de Passados citados por JLG?
Em certa medida, sim. É perda de tempo para quem com repertório de 50 palavras se depara com um vocabulário de 500 palavras e não tem qualquer disposição para desafios. Mas, igualmente, em certa medida, não! Mesmo para esse leitor com vocabulário de 50 palavras, se ele se sentir desafiado.
A leitura de Passados citados por JLG, acentuo, é um desafio para quem tem um vocabulário com 50 ou mais palavras… Um desafio que pode levar esse potencial leitor a ter a compreensão do que, para além do ofício de cineasta, mobiliza, está em pauta, o cinema, os filmes, de Jean-Luc Godard (notadamente quando ele tem presente o assunto IMAGEM e MEMÓRIA).
Se, como expus acima, JLG é motivo para Didi-Huberman, o cinema, filmes, é igualmente motivo para JLG expressar o que ele pensa sobre o mundo, a história, a partir de IMAGENS e da MEMÓRIA.
É então nesse movimento entre IMAGEM e MEMÓRIA, para Didi-Huberman e para Godard, que se deve ter toda atenção com a leitura de Passados citados por JLG. E assim, ter a compreensão de que em um “cineasta” multifacetado, asfixiante, provocador, que seguiu caminhos dissonantes à direta e à esquerda, no sionismo e no antissionismo, em mais de 100 títulos um filme, História(s) do Cinema, ganha enorme destaque.
A quem, por acaso, se dispuser a um recorte, e que tenha o cinema strito sensu por foco, recomendo ler isoladamente o capitulo VI; especificamente as seções que tratam de “Cinema de poesia: Chklovski” e “Godard, Pasolini: ligações e desligamentos”.
Mais especificamente, ainda, a se pensar no plano da diatribe, da querela, para Didi-Huberman um “cineasta” que se ombrearia com Jean-Luc Godard seria Pier-Paolo Pasolini. Vale ver com toda a atenção, principalmente, a enquete que Didi-Huberman faz para situar o embate entre os dois em relação ao que Pasolini escreveu sobre “cinema de poesia”.
Essa leitura será tão mais proveitosa quando se tiver em vista o desdém de Bergman pelo cinema de Godard. No desdém de Bergman, em meu ponto de vista, um embate entre desiguais. Ao afirmar “incompreensão” sobre Godard, Bergman, de modo altivo, sobranceiro, confessa não o alcançar.