Para a grande maioria das pessoas no Brasil, a palavra “cinema” se identifica à expressão “cinema norte-americano”; ou, de modo mais direto: cinema norte-americano e Hollywood se permutam como seis e meia-dúzia. Ora, mesmo que obviamente se saiba haver cinema além dos Estados Unidos, há tacitamente para muitos algo como a “naturalização” de que o cinema de “verdade” é aquele que vem de um lugar de contornos míticos chamado Hollywood.
Tudo além seria deturpação, cópia mal-ajambrada, senão como presunção cult falsamente intelectualizada europeia ou da periferia do capitalismo. Em síntese: além de Hollywood, uma impostura, uma deformação para o que não passa, tão somente, de lazer, entretenimento, entre tantos no jogo do mercado cultural. Traçado esse crivo, cinema é não mais que diversão; e esta é propiciada com toda eficiência por Hollywood; em decorrência, a indústria de cinema norte-americana.
Óbvio, exagero nas tintas para antecipar que não há “naturalização” na hegemonia do cinema norte-americano; nem que Hollywood e cinema em sentido estrito sejam sinônimos. Óbvio igualmente que “desnaturalizar” a supremacia incontestável do cinema norte-americano, Hollywood, não é só expressar uma “doxa”, para usar um termo grego, mas enveredar num trabalho de “arqueologia”, para lembrar o filósofo Michel Foucault, que “descave” a chamada “ordem do discurso”, a relação de fundo entre “palavras” e “coisas”. Isso implica um trabalho de sapa, uma pesquisa vigorosa para “investigar” os condicionantes que levaram o cinema norte-americano, Hollywood, a se tornar hegemônico e com isso ditar o que de algum modo pode ser nomeado como “gosto” relativamente ao entretenimento propiciando pelas imagens em movimento.
Esse o desafio que se propôs o jornalista e crítico de cinema Pedro Butcher. O resultado de seu trabalho “arqueológico”, para aludir talvez inadvertidamente Foucault (Butcher não se refere a Arqueologia do Saber), foi apresentado inicialmente como tese acadêmica e sai agora convertido em livro intitulado Hollywood e o mercado de cinema no Brasil: princípios de uma hegemonia (Letramento, selo Lumière, 238 p.). Butcher é um jornalista tarimbado, com nome estabelecido, excelente trânsito, circula com desenvoltura no meio cinematográfico. Foi repórter e crítico de cinema no Jornal do Brasil, n´O Globo e editor do website Filme B, dedicado ao mercado de cinema no Brasil (atualmente é colaborador do Valor Econômico). Respeitado e reconhecido, a experiência no Filme B o estimulou a estudar como o cinema norte-americano se impôs no mercado de cinema do Brasil nas primeiras décadas do século passado. Num momento em que, paralelamente, os grandes estúdios em Hollywood alcançaram hegemonia interna e externa.
Um tanto temporão, Butcher se movimentou do dia a dia do trabalho jornalístico para os humores singulares do meio acadêmico. Esse, aliás, um movimento que tem acontecido com frequência recentemente. Não era comum ou, melhor, ignoro essa ocorrência décadas atrás entre jornalistas bem conhecidos e prestigiados. Esse salto do meio jornalístico para o acadêmico, entendo, suponho, exigiu enorme esforço de Butcher. Principalmente porque, embora o assunto da tese tornada livro seja na aparência sedutor, o tratamento dado por Butcher é para mim inegavelmente árido. O cinema, os filmes como apelo de sedução, é praticamente lateralizado em proveito dos condicionantes econômicos, do jogo do mercado e dos diversos interesses comerciais que põem em movimento a indústria de cinema.
Nesse sentido, inegável o esforço de escrita de Butcher para fazer do livro algo que vá além da leitura especializada. Algo que vá além de um texto acadêmico poderoso e que se oferece como fonte de consulta, mas árido, intransponível para um leitor ao mesmo tempo culto e curioso, que tenha presente a relevância do tema e seja limitado quanto à apreensão do volumoso leque de informações exibidas. A forma da escrita mais apropriada para fazer que o texto seja fluido a dê prazer de leitura foi o grande desafio enfrentado por Butcher. Entendo que que ele se sai bem desse trânsito incômodo à medida que se reconhece no livro menos o acadêmico indiferente a um “leitor comum” do que o jornalista que escreve para um público indiferenciado.
Para esse leitor, Hollywood e o mercado de cinema no Brasil não perde a aridez nem são feitas concessões ao rigor acadêmico. Mas, para esse leitor culto, curioso e suficientemente antenado dá elementos para que ele tenha a compreensão de que um simples pacote de pipocas antes de exibição de um filme numa sala de cinema envolve um oceano de interesses. O “inocente” ritual de compra e barulhenta degustação de um pacote de pipocas se inscreve na engrenagem da indústria de cinema. Quanto mais o leitor não especializado tenha essa dimensão, mais ele terá compreensão dos intentos a que se propõe Butcher em seu livro.
A relação entre autor e leitor, sustento, é de mão dupla. Na aridez e complexidade de um assunto, o desafio da leitura: Butcher, não resta dúvida, com Hollywood e o mercado de cinema no Brasil abre um campo a ser desbravado, estimula reflexão, apresenta referenciais bibliográficos, exibe tacitamente o pedregoso caminho de uma pesquisa acadêmica. De sorte que, a disposição para acessar fontes que lhe exigiram uma estada fora do Brasil, a paciência intelectual para examinar arquivos e o traquejo metodológico para equacionar as peças de um quebra-cabeças são investimentos nos quais reconheço imenso valor.
Nesse valor, assim entendo, o grande ganho que a “investigação” de Butcher generosamente expõe a seu leitor hipotético. Pontualmente, Hollywood e o mercado de cinema no Brasil mostra ao leitor brasileiro duas coisas que provavelmente para muitos que trabalham com cinema seja novidade: o conceito de “Estado promocional americano”, um princípio ideológico do liberalismo desenvolvimentista que forneceu as condições para a expansão cultural e econômica dos Estados Unidos, no qual se incluir entre outros o cinema; a circulação da publicação Cine-Mundial, iniciativa de uma editora com sede em Nova York direcionada aos agentes de mercado (o público-alvo eram os importadores e exibidores de países da América Latina).
Assim, no campo da “ordem do discurso”, estas as peças-chave para se ter presente o que de algum modo se pode entender como “princípios de hegemonia” dos grandes estúdios no mercado de cinema no Brasil. No modo como Butcher escarafuncha matérias publicadas na Cine-Mundial e as correspondências e os relatórios produzidos pelo corpo consular sobre o mercado de cinema no Brasil encontra-se a espinha dorsal do livro. Por conseguinte, o leque de possíveis respostas para a “invasão” hollywoodiana no Brasil.
Certo, com essa espinha dorsal o título, que põe lado a lado a conjunção “Hollywood” e “mercado de cinema de cinema no Brasil”, merece atenção. A junção me deixou uma dúvida de equacionamento dos termos. Ou de que a leitura pode carregar desconfiança de que o caminho tomado não seja o que motivou o autor. Ora, trata-se de um estudo sobre como o mercado de cinema norte-americano se expandiu e “invadiu” países periféricos? O Brasil e seu mercado seriam nesse caso somente um estudo de caso da expansão hollywoodiana? Ou trata-se de um estudo sobre o mercado de cinema no Brasil e como esse mercado foi “assaltado” pela presença hollywoodiana? O estudo do que aconteceu no mercado norte-americano é só pressuposto para se chegar ao mercado de cinema no Brasil?
A espinha dorsal parece indicar que o mercado de cinema no Brasil é só um caso na afirmação da hegemonia externa de Hollywood. E se assim for entendido, me fica de algum modo justificado que Butcher ao mesmo tempo que toma os trabalhos de Paulo Emílio, Uma situação colonial, e Jean-Claude Bernardet, Historiografia clássica do cinema brasileiro, não dialoga com eles propriamente. Ao ler a introdução do livro fiquei curioso para ver como entraria na “economia” da redação de Butcher a discussão de Bernardet sobre a crença dos brasileiros nas “origens míticas de nosso cinema” à medida que a história escrita tem em igual medida foco na realização e desdém pela distribuição.
Ora, a discussão de Bernardet não entra no livro. Mas, nisso confesso minha dificuldade de apreensão. No equilíbrio da equação Hollywood e mercado de cinema no Brasil, o segundo termo não parece ter mero efeito retórico. Ocorre que, se assim for entendido, o livro não se compôs com material de pesquisa que levasse o leitor a entender o jogo de interesses em que os filmes feitos no Brasil eram exibidos. Ou, não eram exibidos dada a concorrência com os produtos hollywoodianos vindos da Universal, Fox, Paramount… No jogo do mercado, assim entendi as intenções de Butcher, o termo “mercado de cinema no Brasil” discretamente esconde o cinema feito no Brasil nas décadas estudadas.
Com os pressupostos que têm em vista responder sobre “os princípios de uma hegemonia”, fundamentalmente Butcher apresenta um painel, exibe questões, escarafuncha documentos, sonda hipóteses e com isso pode gerar expectativa de encontrar respostas fechadas. Butcher, contudo, não dá respostas ao que um leitor possivelmente ansioso pudesse esperar. Hollywood e o mercado de cinema no Brasil não é o mapa da mina para se encontrar o caminho de via única que conduziu à hegemonia hollywoodiana no Brasil. Butcher oferece pistas, exibe documentos, desmistifica casuísmo. Contudo, ele não responde sobre o porquê, como efeito da hegemonia admitida como premissa, do lugar comum no Brasil de que a palavra “cinema” é quase sinônimo de “Hollywood”.
Por contraste, ficam para o leitor questões em aberto sobre o lugar comum de que o “cinema brasileiro é ruim”; ou, ainda, um lugar comum não tão frequente, mais igualmente notável, de que “bons filmes brasileiros e assemelham a filmes hollywoodianos”. Um leitor eventualmente curioso para ter respostas para esses lugares comuns não as encontrará em Hollywood e o mercado de cinema no Brasil – princípios de uma hegemonia.