Confesso não teria curiosidade alguma para ler um romance húngaro. Não tenho disposição para ler ao acaso um livro isolado extraído de uma estante. Um ponto em meu temperamento e disciplina de leitura é o de ter para mim, antecipadamente, uma razão de fundo para me aproximar de um livro, um romance, uma obra literária enfim. O que implica ter presente não só o romance, mas igualmente o autor, uma literatura.

Sem a mínima familiaridade com o mundo cultural em que um romance é escrito, não me sinto à vontade para ler qualquer celebrado escritor vencedor do Nobel de literatura. Ou, sentiria uma impostura que me assaltou na faixa dos vinte anos – lembro ter lido o japonês Yasunari Kawabata – e entrar na onda de leitura de um escritor que me seria literalmente ignorado não soubesse ter sido premiado com o Nobel.

Bem, mas, pela segunda vez na história a língua húngara é laureada com o Nobel de literatura. A primeira vez foi com Imre Kertész, em 2002, que jamais li, e agora com László Krasznahorkai. Ora, não tenho do mundo cultural húngaro o mínimo dos mínimos que me estimularia a ler Krasznahorkai. E na idade em que estou não reúno energia nem qualquer disposição para me “aprofundar” no mundo húngaro. Lê-lo e uma experiência que não diferiria da que tive ao ler o japonês Kawabata décadas atrás. Infelizmente de uma leitura assim nada além do lugar comum “gostei”, se indagado sobre o que achei. O que convenhamos é tão só um rito social em que não se diz nada numa conversa social com certo ar nonsense.

Tanto quanto Kawabata – hoje sinceramente imagino quem se recorda de o ter lido –, Krasznahorkai teve o infortúnio este ano de ser laureado com o Nobel de Literatura. Sátántangó (1985), então, seu único romance traduzido para o português, ganhou as vitrines. A sazonalidade nobélica e aumento de vendas como sói acontecer todo ano não é obviamente novidade e por óbvio o mercado editorial é assim redundantemente aquecido. Isso hoje, no entanto, nem de longe me levaria a ler Sátántangó senão por ter visto Sátántangó, filme (1994), de Béla Tarr.

Longe de qualquer comparação (paragone) entre livro e filme. Tanto mais, com respeito ao livro, dada minha descomunal ignorância sobre a cultura na Hungria.  Mas, sim, do livro não digo com a leitura nada além do nonsense “gostei”. Já do filme digo que é uma das obras primas da arte cinematográfica mais impactantes que vi nos quarenta anos mais recentes. Entre livro e filme o muitas vezes imperceptível jogo entre palavras e imagens. Entre o que se oferece para ser imaginado e a imagem que efetivamente se exibe. A matéria prima da literatura é o verbo, o uso de palavras, e com elas o desafio da tradução, da tradução de uma cultura. No caso de Sátántangó, para mim uma cultura praticamente inacessível. Mesmo que por capricho e num impulso eu começasse a ler outros romances do Krasznahorkai que é certo serão traduzidos “aproveitando” sua fama nobélica.

Vejamos. O filme começa com um plano-sequência de 10 minutos. A câmera faz um lentíssimo travelling lateral à esquerda e vê-se um “curral”, vacas se movimentando lentamente no lodaçal, num espaço que também pode ser um “estábulo”, “galpões” aparentemente abandonados, um “celeiro”… Enfim, palavras, palavras, palavras – uso palavras e vejo imagens. Nas imagens, o SIGNIFICANTE. E, portanto, o impacto que elas me causam, mesmo que eu não tenha qualquer compreensão do que seja, ou não seja, um estábulo na Hungria.

O livro? Krasznahorkai é extremamente sucinto na descrição do ambiente. O que no filme para mim, SIGNIFICANTE, é um “curral” para ele é um espaço vago, impreciso, ou assim o leio. Futaki, um personagem, observa o que se passa no povoado e “… como sabia que Schmidt e Kráner somente naquela hora tocariam os bois para levá-los do Szikes ao estábulo de Gazda, ao norte do assentamento, onde por fim eles receberiam o dinheiro amargo referente a nove meses de trabalho, e portanto um bom par de horas se passaria até que de lá chegassem em casa, decidiu que dormiria mais um pouco”. Assim é traduzido do livro o que no filme vejo 10 minutos. em um plano-sequência com uma música over pouco audível, mugidos, cantos de pássaros e um vento forte que sopra.

Ao ler o livro, essa passagem, posso, sim, imaginar um estábulo, tendo por referência estábulos que vi, tendo por referência a arquitetura de estábulos aqui no Brasil. Mas, ao ler na tradução “estábulo”, tanto essa palavra, entre outras, pode passar batida com a leitura como não tenho como saber a possível diferença entre um estábulo no Brasil e um estábulo na Hungria. Pior, não sei se no livro a melhor tradução seria curral, celeiro… E como esse referente me falta no livro, não tenho com a leitura a visão do impactante plano-sequência com vacas saindo do curral do filme. Melhor: ao ver a imagem, eu não preciso nomear uma palavra como “estábulo”, “curral”… para saber de onde no filme as vacas se movimentam: eu simplesmente as vejo e sinto, intuo o que com elas Béla Tarr exibe como mensagem.