Um filme oferece diversas possibilidades de apreensão. E isso, as possibilidades, pode ser muito mais rico em certos filmes que outros. Conforme, claro, estejamos mais próximos no tempo e no espaço daquilo que um filme narra. E esse o caso, para mim, de Ainda Estou Aqui, de Walter Salles.
Minha sensibilidade com o que esse filme “conta” determina minha apreensão. Ora, mesmo sabendo, já há tanto tempo, o que ocorreu com Rubens Paiva (desde a leitura de Feliz ano velho, do filho, Marcelo, acho que pelos idos dos anos de 1980…), eu fiquei muito tocado. Há algo nele que me bate e que é difícil dizer.
A escolha por focalizar o clima doméstico, a relação familiar, o cotidiano de Rubens Paiva e de sua família é de uma sensibilidade ímpar. O cinema consegue o que a escrita não possibilita: ver ser colocado um disco na vitrola e ouvir Caetano, ver a disposição dos livros no escritório de Rubens Paiva, ver a fachada de sua casa vista da rua igual a tantas que vi, a escada para os quartos, as festinhas em que tantos chegam e saem sem compromisso… tudo isso me fez sentir o que foi pra mim os anos 70 no Brasil.
Quer dizer, mesmo não pertencendo ao mesmo segmento social de Rubens Paiva, mesmo não tendo o ambiente intelectualizado e político em que viveu, aquela atmosfera de contato direto com a rua, com brincadeiras na rua, com uma vizinhança entrando e saindo de uma casa a outra, é algo que vivi, que se perdeu no tempo e que o filme recompõe.
Nesse sentido, então, Ainda Estou Aqui, independentemente de qualquer outra forma de apreensão (obviamente que quem nasceu no século XXI pode apenas imaginar…), tem forte apelo nostálgico para quem viveu no Rio, em São Paulo, em outro centro urbano no Brasil quando a vida cotidiana era movida por encontros casuais, sem convites para festas, sem a excessiva formalidade e frieza das relações nos anos atuais.
Por outro lado, a presença onipresente dos órgãos de repressão, as conversas truncadas, silêncios, reservas, sensação de desconforto, a baratinha espreitando (o fusca da polícia nas cores vermelho e preto), tudo isso também só o cinema pode exibir. O texto pra mim, o livro do Marcelo que se serviu de adaptação para o filme, não dá a dimensão de afetos e terror que quem viveu aquele período de nossa história pode recordar.
Sim, o filme, e não o livro, nas sequências ao desaparecimento de Rubens Paiva e prisões de sua esposa Eunice e de sua filha Eliana, então com quatorze anos, tem a condução de um terror, sem que tenha o terror como motivo condutor.
Nesse ponto, uma boa ocasião para dizer o quanto cinema e literatura se diferenciam. Não acuso, óbvio, Marcelo de não ter sensibilidade para contar o que o cinema “conta”. Apenas enfatizo que ler e ver oferecem experiências sensitivas que se diferem. Ao ler o livro eu não vi a estante de Rubens Paiva que vi no filme. E no filme em destaque o livro Negras raízes (evidente liberdade poética, pois esse livro de Alex Haley é de 1976…).
Percebo também que com discrição, muita discrição, a política aparece até indiretamente. Por óbvio, não podia faltar, mas não há o uso de clichês, não há escolhas estandardizadas com slogans e frases de efeito tipo abaixo a ditadura! A ditadura, os anos de chumbo, percorre, claro, o filme sem que isso seja um andaime para o espectador ter reforçado o tempo todo o horror e arbítrio daqueles anos.
Então, o clima aparece na timidez dos noticiários censurados, na notícia do sequestro do diplomata suíço, Giovanni Bucher, um mês antes do desaparecimento de Paiva (e em relação ao qual Paiva acabará indiretamente envolvido…). E acho essa opção bem positiva. O filme não ganharia se se apresentasse como panfleto, ou como documento que mostraria verdadeiramente como agiam os órgãos de repressão nos anos da ditadura.
O momento mais tenso e, digamos, de feição documental, é quando da prisão de Eunice e Eliana. Principalmente nas sequências de interrogatório de Eunice. Mas não se apela ao fetiche de imagens chocantes de tortura nos porões. Não se exibe como Rubens Paiva foi morto sob tortura.
Nessa elipse, a exigência de que o espectador tenha presente a história nos anos de chumbo no Brasil. Sim, cabe à história julgar. E a história estabeleceu o lugar que cabe à tragédia da família Paiva.
Acho, contudo, que entre as opções os arcos de tempo não foram bons. Isso porque fica difícil para o espectador que não leu o livro de Marcelo apreender como a família tocou a vida em São Paulo. A esse respeito, a divulgação do filme também não ajuda ao enfatizar que Ainda Estou Aqui mostra a luta de uma mulher para criar os filhos depois do desaparecimento do marido…
Ora, a ação começa em 1970 e vai até a mudança da família do Rio para São Paulo. E aí há um hiato com a ação novamente em 1996, no governo Fernando Henrique, quando Eunice recebeu atestado de óbito de Rubens Paiva e, portanto, teve o reconhecido oficial de que era uma viúva.
Respeitado o valor simbólico da data, é praticamente impossível entender como Eunice reconstruiu a vida e o papel que teve na luta pelos direitos humanos. Também a se notar que a construção dramática do personagem Marcelo para um espectador desatento cai de paraquedas, sem aqui querer fazer jogo de imagens com o que de fato aconteceu com Marcelo Paiva: o acidente que o deixou tetraplégico.
Se com respeito aos anos de chumbo há uma delicadeza notável no tratamento de pormenores, como em notícias televisivas que mencionam longinquamente o nome de Carlos Lamarca, a ostensividade com que o personagem Marcelo desponta tem para mim efeito ruim.
O mesmo vale para a terceira parte, o ano de 2014 com o Alzheimer… Antes de ver o filme, essa justamente era minha curiosidade, como Ainda Estou Aqui cobre cinquenta anos de história relatados no livro de Marcelo. Os saltos no tempo, inclusive “didaticamente” com letreiros afirmando explicitamente tais saltos, não foram bem recebidos pela minha sensibilidade para um filme tão sensível.
Para mim, como efeito dramático, o filme termina com a mudança da família Paiva do Rio para São Paulo. E isso aconteceu em 1974, sem que no filme se exibisse o ano da mudança em letreiro indicativo…
Sobre o Oscar. Acho que a Fernanda Torres merece independentemente de qualquer se não. Mais, embora eu não seja autorizado a falar sobre o assunto atuação no cinema, até onde meu curto repertório dá conta é a maior atuação de uma atriz e mesmo ator no cinema brasileiro. Posso estar sendo precipitado. Mas não tenho lembrança agora de algo parecido.
O filme e o Oscar? Acho pode estar na lista. Torço muito. Mas sinceramente pensar em levar é difícil.