Temos aqui o relato de Cleber Eduardo que participou do Festival Internacional do Nuevo Cine Latino-americano de Havana, em Cuba, no mês de dezembro de 2024. O texto, que caminha entre a reportagem e a crônica, dá um detalhado painel do que foi o evento, um dos mais tradicionais festivais de cinema realizados na América Latina
A chegada a um novo velho mundo
Convidado pelo 45º Festival Internacional do Nuevo Cine Latinoamericano de Havana, como representante do Cine BH – Belo Horizonte International Film Festival, no qual atuo como coordenador da programação latino-americana, desembarco no aeroporto José Martí, nome icônico do poeta revolucionário ligado à independência do país em relação aos colonizadores espanhóis e militante da ideia de uma unificação da América Latina (Nuestra América, seu equivalente da Pátria Grande, de Simón Bolívar).
Martí ainda é uma presença forte no país, tanto quanto Che Guevara e Fidel Castro, mesmo tendo vivido apenas 42 anos entre 1853 e 1895, justamente o ano da primeira sessão dos irmãos Lumiére em Paris. Não conheceu o cinema e sua importância histórica, cultural e social.
Martí defendia uma identidade coletiva latino-americana, respeitando suas diferenças, mas com o espírito anticolonialista como diretriz principal. Os Lumière ajudaram a criar uma atração que, francesa nos primeiros passos, logo se tornou mundial e atravessa mais de um século, sem data para ter fim, com reverberações e polêmicas na relação com a realidade.
O Festival do Nuevo Cine Latino-Americano de Havana, iniciado em 1979, coloca a América Latina no centro da programação (no espírito de José Martí), com ênfase nos filmes com questões sociais, apesar de exibir alguns filmes de outros cantos do mundo e ter preferência pelos filmes já rodados pelos festivais da Europa e da América do Norte.
A noção de Pátria Grande e Nuestra América, de Bolívar e Martí, unindo os países do Caribe, da América Central e da América do Sul, ainda manifesta vestígios resistentes, mas também enfraquecidos pelo pragmatismo intercontinental do mundo e do cinema contemporâneo.
Essa é uma situação constante em Cuba, oscilante entre a retórica idealista e a prática objetiva, que muitas vezes não entram em sintonia. Para muitos cubanos e cubanas, Cuba é acima de tudo uma ideia de país, atravessada pela dureza da realidade.
Martí morreu quando o cinema surgiu como atividade comercial no ambiente dos shows de variedade, das feiras e espetáculos de circo. Um novo mundo, no século XX, estava nascendo. Um cinema latino-americano também surgiu pouco tempo depois, sobretudo em México, Argentina e Brasil, sem conquistar o mundo nem seus países. E uma nova Cuba, a partir da segunda metade do século, abalaria parte dos países capitalistas. Era o tal do socialismo moreno e caribenho, atrelado a URSS e aos países comunistas da Europa, hoje mais conhecido, entre alguns cubanos como “realismo socialista mágico”, o que, de certo modo, explica o fascínio de Gabriel García Márquez pelo país. O amor sempre foi recíproco. E intenso.
Gabo, apelido do escritor colombiano, nascido em Aracataca em 6 de março de 1927 e morto em 17 de abril de 2014 na Cidade do México, participou da criação da Escuela Internacional de Cine y TV (EICTV), em Santo Antonio de los Baños, em 1986, já às vésperas da derrocada do bloco comunista na Europa e na URSS, que, consequentemente, resultou em algo equivalente a um furacão na ilha de Cuba. Escreveu sempre sobre sua Colômbia, sobre regiões específicas do país, mas se tornou cidadão da América Latina, amigo íntimo de Cuba e residente no México.
O escritor esteve presente, à sua maneira, na edição de 2024 do festival em Havana, que comemorou ainda os 65 anos do ICAIC, órgão responsável pelas atividades cinematográficas no país. Em um ano de celebrações, em meio à crise radical instalada em Cuba, a sessão mais concorrida foi no Cine Chaplin, com 1000 lugares, na Calle 23 (a rua com mais salas de cinema em Havana), composta pelos dois primeiros episódios da série Cem Anos de Solidão, baseada no best-seller de Gabo, produção colombiana de filhos do escritor para o streaming Netflix, uma empresa criada em 1997 na Califórnia (EUA).
Netflix em adaptação do livro mítico de Gabriel García Márquez, um dos fundadores da escola de cinema mais famosa da América Latina. Cuba mudou. Aquele país fechado para o mundo e controlado com lupa pelo governo só existe na memória. Será? Ouve-se músicas em inglês em qualquer lugar. Um homem corre na avenida beira mar ao lado do Malecón (de frente para Miami) com um calção com a bandeira dos EUA.
Os restaurantes têm proprietários que almejam lucros altos. Mudanças parciais, mais que estruturais. A Netflix, por exemplo, é proibida no país, assim como empresas e filmes dos EUA. Dólares, porém, são bem-vindos. Só tem acesso a Netflix quem paga o sinal da Jamaica. Streaming em Cuba é pirataria via Telegram, com compartilhamento e download de filmes.
Há muitos mitos sobre Cuba. Muitos medos também. A saída do Brasil, via aeroporto de Cumbica, em Guarulhos (São Paulo), tem um tom policialesco (da Copa Airlines), que não vi em Cuba como atitude oficial. Há exigência no embarque de um visto de turista (20 dólares) e impressão do comprovante internacional de vacina contra a febre amarela, sem o que não se embarca. Já a chegada ao aeroporto José Martí, ainda na alfândega e na vigilância sanitária, é marcada pela vista grossa, sem ninguém sequer olhar seu nome no visto ou no comprovante da vacina. Adelante! Alguém chega sem o comprovante internacional da vacina, mostra sua carteirinha do SUS de vacinação, a funcionária mal olha e pede para passar à frente. O jeitinho cubano deixa o dos brasileiros no jardim da infância.
Havana é a cidade da flexibilidade com as regras. Funcionários do próprio governo auxiliam a trocar dólares por pesos cubanos no câmbio paralelo e clandestino (1 dólar = 320 pesos), quase três vezes mais em conta que no câmbio oficial do Hotel Nacional (1 dólar = 110 pesos). O valor dos taxistas, dos quais desisti no primeiro dia após me cobrarem 10 dólares para andar 10 minutos, tem de ser negociado. O bar do Hotel Nacional só aceita cartão de crédito, mas a maioria não passa e, consequentemente, é preciso pagar em pesos para a garçonete, que pega o dinheiro para ela e passa seu próprio cartão no bar.
“As leis aqui são para não serem cumpridas”, afirma um morador da cidade, em uma fila para uma sessão do festival. “Se forem rigorosos com as regras, o país não se aguenta de pé”. Depois de alguns dias, tive essa mesma sensação. Mal vi policiais na rua. Não significa que os autoritarismos, na convivência cotidiana com pessoas com cargos de chefia de qualquer nível (mesmo na iniciativa privada), não sejam notáveis, às vezes explícitos, grosseiros, constrangedores. Há muito carinho e há muita impaciência. “Fidel fez bem e fez mal”, fala outro cubano, frequentador do festival
Ainda antes de entrar na primeira sessão de filmes, recebo uma aula de um funcionário público sobre a privatização do comércio à moda cubana. Não exatamente privatização, mas liberação para se ter negócios. Sem condições de fiscalizar a entrada de dinheiro nos estabelecimentos comerciais, os impostos de restaurantes e de alguns condutores de carros privados são obras de ficção. Preços nesses comércios estão nas alturas. São para turistas em boa condição financeira e para a elite cubana.
O que o governo ainda controla, como as atividades culturais, saúde e educação, são infinitamente mais baratas que as demais atividades financeiras. Para se ter uma ideia: enquanto o passaporte para ver 6 filmes no festival custa 60 pesos, valor com o qual é possível comprar três livros sobre cinema (cerca de 0,20 dólares no câmbio paralelo e 0,50 dólares no oficial), uma refeição em um lugar simples não sai por menos de 1.600 pesos (em torno de 5 dólares no paralelo), ou mais de 25 vezes o preço dos seis ingressos. É como se no Brasil um jantar em um boteco custasse mais ou menos 750 reais. Sem vinho ou cerveja.
Nessa economia das disparidades, afetada pelo bloqueio e pelo embargo econômico liderado pelos EUA contra Cuba (que deve piorar com Trump), faltam remédios e poder de consumo para a população. Muitas pessoas precisam ter duas atividades econômicas. Há quem tenha carro, mas não dinheiro para a gasolina, quando não falta gasolina nos pontos de abastecimento.
Algumas famílias recebem ajuda financeira de parentes residentes fora do país. A cesta básica do governo não dá para quase nada. O salário de um ator de teatro ou de um programador do festival de cinema não passa de 4.500 pesos (41 dólares no câmbio oficial). Há uma arte de viver com muito pouco, no limite das necessidades básicas e às vezes abaixo dessas necessidades, mas, se olharmos para o todo, a situação de quem está na pior parece melhor do que o pior dos demais países da América Latina.
A sociedade tem acesso gratuito a todos os estágios da educação em escolas e universidades, não sem dirigismo ideológico, e a população tem possibilidade de ir ao cinema e ao teatro, a preços acessíveis, se houver tempo e ânimo na luta cotidiana pela sobrevivência. Poucos minutos de conversa são suficientes para perceber o conhecimento sobre outras culturas e manifestações artísticas de outros países da América Latina. Um ator veterano, em conversa com um jovem cineasta, é questionado: você é crítico? Responde: “Crítico como todo cubano, mas ator de profissão”. Preciso.
O espírito crítico cubano tem uma malemolência bem-humorada. Em uma apresentação de uma edição especial da tradicional e fundamental revista Cine Cubano, um dos responsáveis pela revista anuncia um concurso para jovens críticos serem selecionados para publicarem críticas. Parece uma boa ideia de estímulo à renovação dos olhares críticos. Mas nada tem só um lado em Cuba. E as pessoas acima dos 50 anos na plateia da apresentação, no Hotel Nacional, questionam a priorização da renovação em detrimento da preservação de olhares de maior experiência. Alguém reage entre ouvintes da apresentação: “A vida está dura para os velhos em Cuba, falta remédios, e agora querem nos barrar na crítica de cinema”.
Há ricos em Cuba, empresários, membros do governo, famílias de diplomatas, mas, para a maioria, o consumo é inacessível. Assim como alguns produtos. Segundo mais de uma pessoa cubana disse, o país vive o pior do socialismo (sem dinheiro) e do capitalismo (sem limites de preços). Falta ainda liberdade de expressão e, mesmo no festival, houve cancelamento de um curta metragem cubano, Matar a un Hombre, de Orlando Mora Cabrera, assim como houve de outros filmes cubanos em edições recentes, com consequente manifestação crítica do diretor nas redes sociais e da Escola de Cine y TV de Santo Antonio de los Baños.
Não houve respostas oficiais do festival ou do governo ao protesto do diretor. O curta estava programado e, segundo a versão do festival, não foi exibido por falta de energia. Teve sessão remarcada, que também não ocorreu. O diretor acusa festival e governo de ter sido censurado por razões homofóbicas, mesmo com a organização do festival se empenhando para exibir o filme, sem êxito. Não faz sentido a censura ter partido do festival, que fez de tudo para exibir o filme. Acima do festival, porém, há o governo.
“É um evento de excessos em tempos que clamam por austeridade”, escreveu Orlando Mora Cabrera, o diretor, em seu perfil de Facebook, além de questionar a exibição de Cem Anos de Solidão, por se tratar de produto de empresa imperialista. Após o encerramento do evento, o curta foi exibido na Fundação Ludwig, com três sessões abarrotadas. Também teve sessão na embaixada na Noruega. Censura gera marketing. E abertura de portas em solidariedade.
Além de liberdade, também falta luz. O país foi afetado por apagões sinistros em outubro e novembro de 2024, viveu as consequências de um furacão e, por isso, houve quem não acreditasse na realização do festival. Durante algumas sessões, as exibições foram interrompidas por 30 minutos, outras foram suspensas e houve também sessões não realizadas por essa mesma razão. Encaminhar-se para ver um filme tornava-se uma decisão cercada de incertezas. Eu pessoalmente vivi uma interrupção (do brasileiro Baby, de Marcelo Caetano) e um cancelamento de sessão (do brasileiro Malu, de Pedro Freire).
Por falta de mão de obra e de internet de qualidade, a organização do festival foi afetada na produção de conteúdos informativos para seu site e para seu perfil no Instagram, raramente tendo a programação do dia seguinte disponível para se checar quais filmes seriam exibidos e onde as exibições aconteceriam. O compartilhamento de informações oficiais é uma tremenda dificuldade na sociedade cubana, assim como a prática de um planejamento e de uma organização com algum rigor. As contingências produzem uma cultura no modo de se viver. A cultura do improviso e do imprevisto. São geniais nisso.
Gabo + Netflix
Em uma primeira impressão, exibir Cem Anos de Solidão, em disputada sessão de um festival com a tradição de fortalecimento identitário e político do cinema latino-americano, soa como contradição ideológica. Ou oportunismo paradoxal. Talvez seja, mas, na prática, para além do simbolismo, talvez não. A contradição seria menos por ter financiamento em dólares e mais pela Netflix ser vista como homogeneizadora formal, cultivando um padrão internacional para seus produtos originais.
Por esse ponto de vista, não importam as origens das produções, se latino-americanas, asiáticas ou europeias, o DNA seria sempre da Netflix, não das autorias implicadas. Não entrarei nos pormenores dessa discussão, embora seja um debate rico e interessante, que pede alguns matizes por dentro da matriz empresarial. E talvez o caso de Cem Anos de Solidão, com sua matriz literária colombiana, mereça ser melhor analisado, sem os preconceitos envolvidos em sua recepção antes de ser visto. Talvez.
No contexto do Festival Internacional do Nuevo Cine Latino-americano de Havana, em sua 45ª edição e no aniversário de 65 anos do ICAIC, há outros sentidos extra diegéticos, que não serão encontrados nas imagens, cenas e diálogos da série, mas em suas contingências de produção. Trata-se de a mais “importante” obra ou produto audiovisual latino-americano, especificamente em potencial de internacionalização de sua visibilidade. Uma marca forte, desde 1967, quando o livro foi editado. São 50 milhões de cópias vendidas e tradução para 46 línguas (e não países). Nada antes esteve perto desse patamar de amplitude de circulação latino-americana pelo mundo. São 190 países com a série em cartaz dentro da casa das pessoas.
Portanto, uma série-evento, independentemente de valores estéticos e narrativos, de sua qualidade. Aliás, qualidade, no quesito técnico, há sim, ao menos para o padrão globalizado da Netflix, que impõe certas marcas de câmera para suas produções originais e tem fama de interferir na criação. Mesmo investindo em obras de cineastas com prestígio e reconhecimento, a empresa de streaming só tem interesse no que pode gerar dinheiro pela audiência ou pelo marketing, esses outros valores agregados que cada vez são mais levados em conta.
Programar uma sessão de gala em um festival de cinema latino-americano em Havana diz muito dessa importância estratégica da latinidade audiovisual e diz muito das flexibilidades e das estratégias do próprio festival em pegar carona na popularidade prévia de alguns títulos programados. Não é um evento de descobertas e apostas, mas sim de apostar no seguro e no reconhecimento das obras em outros festivais. Estavam lá os filmes exibidos em Cannes, Berlim, Veneza e Locarno, os eventos mais badalados do cinema autoral. Cem Anos de Solidão entra nessa tática de programação.
Gabo havia recusado todas as propostas de adaptação até sua morte em 2014. Passados 10 anos, graças às exigências dos filhos Rodrigo García e Gonzalo García Barcha (diálogos em espanhol, duração extensa e não de longa-metragem, elenco, locações da Colômbia, direção de Laura Mora e Alex Garcia Lopes etc. e tal), a série está no ar. Serão 16 episódios em duas temporadas. No Brasil, já se escreveu que é o lançamento mais arrebatador do ano. Na Colômbia, houve uma sessão, em um museu, com presença do presidente Gustavo Petro.
Sem entrar em detalhes analíticos no momento, senti apenas que a narrativa, pela própria extensão do livro, é apressada em muitos momentos. Mais relato que narrativa. Mais luz que cena. Mais interpretação que personagens.
Os mistérios de Macondo e de seus personagens centrais, os Buendia, acabam domesticados pelo padrão limpo e vistoso exigido pela internacionalização (e pela Netflix). Magia sóbria, controlada, ilustrativa. Prazerosa, porém. O valor da obra, de qualquer modo, se maior ou menor, se fiel ao espírito do livro ou se rebelde em relação ao original por necessidades de adaptação, não é o principal por ora. E sim seu valor de latinidade internacional no mercado das imagens e das narrativas.
Latino-americanos legitimados na Europa e América do Norte
O festival tem todo tipo de competição: longas e curtas de ficção, longas e curtas documentais, longas e curtas experimentais, primeiros longas, curtas de animação e cartazes. Há ainda os prêmios colaterais escolhidos por diferentes associações. As sessões mais concorridas são as de longa de ficção, em parte porque os filmes foram exibidos em importantes festivais internacionais europeus, em parte porque alguns têm atores e atrizes familiares aos cubanos.
Os mexicanos La Cocina, de Alonso Ruiz Palacios, exibido no Festival de Berlim e ganhador dos principais prêmios Coral em Havana, e Sujo, de Astrides Rondero e Fernanda Valadez, exibido em Sundance, foram dois destaques, na linha “cinema de impacto narrativo e dramático”, tão explorado pelo cinema mexicano recente. O argentino El Jockey, exibido nos festivais de Veneza, Toronto e San Sebastian, teve sessões animadas, com risos espalhados pela plateia e aplausos fortes ao final. Também foi bem agraciado de prêmios.
O documentário colombiano Alma al Deserto, de Mônica Taboada, que estreou no Festival de Veneza, ganhou prêmio especial do Juri em sua categoria. O dominicano Sugar Island, de Johannes Gomes Terrero, também estreou em Veneza e, em Havana, foi premiado por sua contribuição artística. Outros latino-americanos com selos de outros festivais: Simón de la Montaña, de Federico Luis Tachella, exibido em Cannes e ganhador em Havana de melhor primeiro longa-metragem, o chileno El Ladrón de Perros, de Vinki Tomici, exibido no festival Tribeca e ganhador do prêmio de roteiro em Havana, e o peruano Raiz, de Franco Garcia Becerra, e o argentino Algo Nuevo, Algo Viejo, Algo Prensado, de Hernan Rosselli, exibidos no Festival de Berlim.
O time brasileiro esteve também representado por longas metragens de circulação de prestígio e prêmios em outros eventos. Manas (ganhador de quatro prêmios colaterais), de Mariana Brennand, talvez o filme brasileiro mais comentado no ambiente do festival, e Apocalipse nos Trópicos (ganhador do Coral de melhor documentário), de Petra Costa, foram exibidos no Festival de Veneza. Baby, de Marcelo Caetano, passou pelo Festival de Cannes. Malu, de Pedro Freire, estreou no Sundance (EUA). A participação brasileira, proporcionalmente a seu volume de produção, é relativamente discreta no cenário latino-americano. Como disse um diretor, são sempre os mesmos filmes brasileiros e latino-americanos viajando pelos festivais. Uma programação réplica a outra.
É mais ou menos como se Havana exibisse primordialmente uma espécie de Libertadores da América do cinema latino-americano, com os filmes de cada país que foram mais bem sucedidos no estrangeiro. Parte dessa razão é porque o evento acontece no fim da temporada de cinema, iniciada em Sundance e Roterdã em janeiro de cada ano, e parte é porque o evento está voltado principalmente para o público cubano, que corre atrás sobretudo dos filmes com algum background.
Cerimônia de encerramento e de premiação
Depois de uma semana em Havana, vendo filmes, conhecendo cineastas e programadores de festivais, andando e conversando pelas ruas, chega o momento do encerramento, pouco importante pelos prêmios, muito importante pelo que revela das contradições cubanas. Se as ruas são quentes e o povo é caloroso, curioso, bem-informado e cheio de bossa, a cerimônia é fria, apressada, atrapalhada, quando não caótica. Parece soviética, mas um pouco pior. Uma menção especial ao brasileiro Baby, de Marcelo Caetano, por exemplo, sequer foi mencionada na premiação. Um envelope com o nome do filme ganhador do WIP Havana, O Monstro, da brasileira Helena Guerra, havia sido esquecido e a diretora, apesar de ter sido anunciada como ganhadora de categorias de finalização, não pôde subir ao palco, porque não havia nada a entregar a ela.
De tempos em tempos, a premiação ganhava uma pausa e, com música ambiente, eram projetadas imagens de Fidel Castro, de outros momentos do festival, show de imagens de arquivo de alto valor histórico, mas que, em uma cerimônia de festival, ganha ares de propaganda ideológica de museu do socialismo. Funcionários do Partido Comunista de Cuba e do governo comandado por Miguel Diaz-Canel, presidente e primeiro secretário do partido, tomavam muitas das cadeiras do Cine Chaplin. O presidente convocou alguns cineastas e convidados do festival para uma conversa e prometeu que, mesmo com dificuldades, o festival jamais deixará de existir.
Esse mesmo tom foi gritado pelo presidente do ICAIC na cerimônia final, Alex Trianna Hernández, que, ao estilo de discursos revolucionários dos anos 60 e 70, bradou que, “se a natureza estiver contra nós, nós enfrentaremos a natureza”. São em momentos assim que, apesar de todas as mudanças constatadas em Cuba, negativas e positivas, sente-se a poeira do tempo, menos charmosa e atrativa que os carros dos anos 50, de fabricação nos EUA, que desfilam pelas ruas de Havana, seja na versão caindo aos pedaços ou na versão encerada para passear com turistas. Havana é uma mistura de museu com ruínas. E pulsa de vida nessa mistura. São tantas as contradições e absurdos que até Gabo teria dificuldade de lidar em sua literatura.
Esse tipo de retórica parada no tempo de Alex Trianna Hernández está mais sintonizada com os prédios em ruínas de Habana Vieja e com os palacetes descuidados de outros bairros, que, sem dinheiro para manutenção, parecem estar próximos de desmoronar. Mais ou menos como o país. Ainda assim, também como o país, carros e prédios resistem. O festival também. O povo, mais ainda. O slogan “Cuba Libre” continua de pé, repetido insistentemente, embora com sentidos dúbios e incontroláveis: desejo de se libertar de seu isolamento parcial, livre porque resiste apesar do bloqueio ou livre porque precisa se libertar também de suas próprias prisões. Em dado momento, na plateia do encerramento, um cubano falou baixo: “Cuba Livre, com eleições livres, liberta de si”. Impossível não se comover, se inspirar e se indignar durante essa semana em Havana.
Cleber Eduardo é professor de diversos cursos livres e de pós-graduação em cinema e gestão cultural, coordenador curatorial do Cine BH – Belo Horizonte Internacional Film, programador do Working Progress da Mostra de Tiradentes, coordenador de seleção de projetos para DocLab e Rodada de Negócios do Doc SP e curador da programação histórica e contemporânea do Cine OP em Ouro Preto.
Fotos de Cleber Eduardo
NOTA
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