Escrever sobre filmes, praticar o exercício profissional da crítica de cinema, é para muitos um registro meramente abalizado: o cumprimento de pauta editorial que no dia seguinte é coberta por demandas de outro momento na atividade jornalística. O que foi escrito, assim, logo cai no esquecimento no turbinoso movimento da imprensa diária (correção e atualização: o noticiário em tempo real em tempo de internet em suas múltiplas artérias).
Recolher escritos de ocasião, do calor da hora, e publicá-los na forma-livro pode carregar tão só o sentido de vaidade pessoal do escriba. É como separar fotografias antigas num álbum que se serve de recordação; mas que não vai além do prazer de propiciar recordações do passado. Um livro assim despertaria atenção por ser um registro, tão só um registro, do que se escreveu sobre o filme tal ou qual e que não se perdeu no turbilhão da vida.
Organizar o que se escreveu há anos, portanto, pode colocar o escriba sobre filmes num dilema: deixar de lado o que se alinhavou contendo, potencialmente, uma “percepção espirituosa” de certo filme que se perderá, pois não será lida por ninguém à frente? Ou, publicar o que se escreveu muito tempo atrás com o sentimento de que tão poucos darão conta de uma tal “percepção espirituosa”? Publicar ou não publicar na forma-livro, para além da vaidade pessoal – de alguém que tem a dimensão do alcance daquilo que que escreveu anos atrás tanto quanto do trajeto que traçou –, é uma decisão não exatamente tranquila para muitos críticos relevantes e destacados em nosso cenário cinematográfico.
Tanto mais porque, para além da rarefação quase certa de leitores, a bolha editorial brasileira é acentuadamente refratária quando recebe “originais” para um “livro de cinema”. Sob esse ponto de vista – pondero o lastro cultural –, sou tomado por sentimento de inveja dos franceses ao casualmente me deparar com a incrível quantidade de livros de cinema publicados por eles. Então, imagino, com mais ou menos intensidade, o dilema com o qual creio se ateve o crítico pernambucano Luiz Joaquim ao tomar a decisão de verter à forma-livro suas críticas de cinema escritas em um quarto de século.
Resultado de sua decisão e disposição para publicar em livro críticas escritas em diversos órgãos de imprensa no arco de 25 anos, tenho em mãos Vinte e cinco: escritos de cinema – 1997-2022 (Cepe Editora, 355 págs.). Primeiro registro: parabenizo a editora pela iniciativa; segundo registro: parabenizo todos os envolvidos numa edição que é realmente bastante caprichada; terceiro registro: parabenizo Ivonete Pinto, que assina o prefácio, pois ela oferece, com limpidez invulgar, o que há de essencial para que um leitor que conheça pouco Luiz Joaquim tenha o sentido de importância da publicação de Vinte e cinco: escritos de cinema – 1997-2022.
Feito esse intróito (sic), passo ao livro. Vince e cinco… é separado em três seções (capítulos): filmes em Pernambuco (Do meu lugar), filmes no Brasil (Do nosso lugar), filmes no mundo (Do lugar de todos), nessa sequência; o que me faz ver o movimento de expansão de dentro para fora do crítico Luiz Joaquim – o lugar doméstico, o lugar nacional, o lugar além-mar. Cada seção, por sua vez, contém exatos 25 filmes selecionados de sua imensa produção. Na introdução, Luiz Joaquim alerta para a subjetividade e limitação no recorte preciso de 25 filmes para cada seção do livro.
Num primeiro momento, de qualquer forma, consideradas as seções (cortes para aludir ao cinema), uma estrutura bastante previsível. Com atenção mais inquiridora, contudo, a se conjecturar: Luiz Joaquim tem no doméstico, no meu lugar, o ponto de partida para transitar no mundo do cinema. Daí, pondero, a expansão, o movimento de dentro para fora. Não é questão de maior ou menor importância o trânsito de um lugar para outro – e a natureza de suas críticas assim o revelarão –, mas de impulso primordial para chegar ao cinema e escrever sobre filmes.
Para mim é percuciente ter presente essas “cousas” latentes num escritor sobre filmes. No corte, nas seções do livro, muito mais que mero arranjo estrutural frio, protocolar. E nesse arranjo o título do livro – Vinte e cinco… – traz o sentido de que Luiz Joaquim, além da competência como repórter e crítico, escreve de uma perspectiva afetiva, de envolvimento emocional, de prazer com o que vê e que generosamente procura compartilhar com o leitor.
Embora Vinte e cinco… possa ser visto em sua estrutura naquilo que é mais imediatamente notável, me vem à lembrança as figuras de Gestalt: forma e fundo. O olhar preso à forma e se perde o fundo. Na “intencionalidade” perceptiva, conforme conceito basilar da fenomenologia, e se percebe o fundo, o que visível, com a forma à frente, não é percebido. No caso, o fundo, como Luiz Joaquim se envolve com o cinema, o modo generoso, afetivo e ao mesmo tempo delicado com que escrutina o cinema pernambucano.
Não há em Luiz Joaquim o jargão vago e acolhedor que vejo em amplo segmento da crítica para o qual escrever sobre cinema se resume em dizer que um filme é bom ou ruim; ou seja, no falsamente aconchegante gostei ou não gostei e ponto final. Luiz Joaquim não é crítico dessa estirpe. Na relação afetiva que mantém com um filme em destaque o que ele realça é sua importância no momento de realização e, de outra parte, como ele foi impactado emocionalmente pelo que viu; como decorrência, compartilhar com o leitor o sentimento que um dado filme lhe provocou.
Com efeito, esse procedimento, essa maneira de se portar frente a um filme compreender-se-ia bem para o caso “cinema pernambucano”. Luiz Joaquim assumiria, assim, a condição de porta-voz do estado que se situa na linha de frente – em quantidade, valor estético e recepção interna e externa – da produção nacional desde a Retomada nos idos da década de 1990. O risco com isso, respeitada a inequívoca projeção do “cinema pernambucano”, é o de deslumbramento. Assim sendo, a perda de critérios efetivos para o exercício da crítica (num filme para tantos e tantos ruim enxergar valor que levaria ao slogan: “É ruim, mas o crítico é ótimo”).
Ora, quem o ler assim perderá de vista, justamente, o fundo. Ruim ou bom são excludências tacitamente rejeitadas em sua maneira de conceber o cinema. Para Luiz Joaquim, a importância de uma obra não comporta primariamente o cômodo julgamento peremptório gostei ou não gostei. E isso vale como princípio para a linha mais desimportante traçada sobre os filmes pernambucanos que ele selecionou para compor Vinte e cinco… Certo, mas então eis a inegável coerência que se pode extrair da linha mais despretensiosa ao longo desse livro. Esse mesmo procedimento, essa mesma maneira de se portar frente ao “cinema pernambucano”, é empregada ao que lhe externo, ao que se encontra além-mar.
Ajustemos as contas: os afetos não são e nem podem ser os mesmos; a sensibilidade é outra e não seria diferente. Não obstante, a maneira respeitosa com que Luiz Joaquim se aproxima de um filme no Brasil e no mundo não difere da com que se atém ao cinema doméstico – “o meu lugar”. No tratamento que dá ao cinema que se realiza em Pernambuco e… no mundo – nesse movimento de dentro para fora –, não só uma indicação de procedimentos técnicos de sua escrita, mas principalmente que Vinte e cinco… é uma oferta para “nosso” entendimento sobre filmes marcantes em geral nesse recente quarto de século.
Dito isso, volto para recompor o fio da meada. O dilema publicar ou não escritos do passado, que pode atormentar críticos com carreiras consolidadas, Luiz Joaquim o resolveu publicando-os; como leitor, entendo como uma feliz decisão. Mesmo que, infelizmente, os humores editoriais no Brasil quanto à publicação de livros de cinema não sejam gratuitos. Será lido por poucos? Pena. Esses poucos “privilegiados” terão em mãos os escritos do “jovem Luiz Joaquim”, e com eles perceber como, em críticas no calor da hora, se revelaram os traços que o farão um dos mais sensíveis e respeitados críticos do país.
Vinte e cinco: escritos de cinema – 1997-2022
Luiz Joaquim
Cepe Editora
356 páginas
ISBN: 978-65-5439-246-4