ernesto_sabato_-_franklin_valverde.jpgDesde a adolescência, quando ainda estava no antigo colegial, tinha especial pendor pelas letras, embora, adulto, tenha feito jornalismo e se dedicado à cobertura de festivais de cinema: trabalhava como crítico e assinava uma coluna mensal na Revista de Cinema. A literatura, de qualquer forma, sempre lhe esteve presente; e era particularmente fascinado pelos argentinos; por eles, tinha verdadeira obsessão. Não lia com o mesmo prazer – ou se interessava com a mesma paixão –, outros escritores latino-americanos do boom literário dos anos 70. Seus amigos adoravam Vargas Llosa, García Márquez, Neruda. Não tinha ele, de fato, apreço por Llosa e Conversa na Catedral lhe era tão maçante que nunca concluiu a leitura (um amigo, o Cido, não cansava de citar A guerra do fim do mundo; e ele questionava: “para que ler Llosa se temos Euclides da Cunha?”); respeitava García Márquez e lera seus romances mais conhecidos – Crônica de uma morte anunciada lhe servia de tirada para desgraças eminentes –, mas o via principalmente como produto de curiosidade eurocêntrica para o exotismo latino-americano; Neruda, por sua vez, lhe era tão só um ícone criado pelas esquerdas na noite dos generais que tristemente irromperam no continente. A literatura argentina era outra coisa e guardava na lembrança a primeira vez na qual ouvira falar em Jorge Luis Borges, quando tinha quinze anos, no começo dos anos 80, numa matéria jornalística na televisão.

 

Em diferentes momentos da vida, sempre tinha um escritor argentino ao lado. Nas viagens que geralmente fazia para eventos de cinema, levava na bagagem Sarmiento, Macedonio Fernández, Robert Arlt, Ricardo Piglia, Borges, Cortázar, sendo este por quem mais sentia admiração, cuja leitura o deixava perplexo e se renovava de tempos em tempos (apesar da imensa admiração por ele, achava infantil O jogo da amarelinha; sentia um artifício tolo ler esse livro em variadas sequências). Mais recentemente, tocado pelo fervor midiático com o lançamento de O Passado e História do pranto, leu Alan Pauls. Mas a leitura, passada a curiosidade inicial e uma impressão positiva, lhe deixou a sensação de que novamente estava diante de um produto de mídia (folheou História do cabelo e deixou intacto História do dinheiro). Pauls – vira entrevistas dele em vários canais de televisão – parecia um escritor que antes de ser escritor pensava que era escritor e isso o decepcionava, mesmo vendo nele o forte desejo de inovar com uma narrativa que fugisse a lugares comuns. Com esse gosto literário peculiar, bastante previsível que, em viagem que faria a Paris, separasse livros de escritores portenhos. Lembrou que há anos não lia Octaedro, de que relia quando podia o conto Os passos no rastro; separou, também, As armas secretas: As babas do diabo remetia à capital francesa, com as andanças do narrador (de um dos narradores…) em volta da Conciergerie, da igreja de Sainte-Chapelle, na Ilê-de-France. Assim, armado com Cortázar, rumou a Paris.

 

Foi a Paris convidado pela Cinemateca Francesa, para um evento em homenagem a Glauber Rocha (falaria sobre seus filmes no exílio, muito mal recebidos na França, e defenderia que a crítica havia escolhido a senha errada para julgar Glauber fora de suas raízes nacionais). Nunca havia ido antes à cidade fetiche para turistas que se exibem em fotos ao lado dos pontos turísticos. De fato, lhe causava irritação a hábito de fotografar com celular infindas imagens que, como o flash da máquina, eram vistas num clarão súbito.

 

A Cinemateca fica na rue de Bercy e ele – como outros participantes do evento – ficou hospedado no Hôtel de la Tour Eiffel, na rue de l´Exposition. Uma van os vinha pegar na entrada do hotel – e, do mesmo modo, se servia para quem quisesse visitar o Louvre ou o Arco do Triunfo… No quarto no qual ficou, bem próximo da torre, da janela podia avistá-la em seu esplendor. Ele, contudo, tinha pouco interesse em visitar o monumento: “A torre está ali, como um paradoxo, símbolo do progresso, da era do capital, que simultaneamente coloca a França, outrora imponente, como potência de segunda linha…”. Ver a torre lhe passava a sensação de melancolia: algo que, de algum modo, é conspurcado pela multidão ao redor.A van que os levava para a Cinemateca saia da rue de l´Exposition na direção da rue Grenelle para acessar a avenue de la Bourdonnais. Contornava então o quarteirão para chegar a avenue Bosquet. Nela, seguia até o Quai d´Orsay e o percorria até a Point de la Concorde. Cruzava a ponte, cujo tráfego era invariavelmente intenso, margeava a praça e virava à direita na longa rue Saint-Honoré, traçada sob o reinado de Filipe Augusto… No ponto em que a Saint-Honoré torna-se contramão, virava à direita, na rue du Louvre, e tomava o rumo do Quai Bercy. O trajeto demorava pouco mais de 30 minutos. Ele se isolava num banco da van e pouco prestava atenção ao que os passageiros falavam (ouvia fugidios murmúrios sobre as loucuras glauberianas ou seu gênio peculiar). Da paisagem, ao cair da tarde, na primeira ida à Cinemateca, teve a atenção tomada pela Place de la Concorde; avistou o obelisco, a iluminação, o imenso espaço vazio, e pensou como ela seria nos anos da revolução francesa.

 

E esse foi o ritmo de sua estada parisiense. Nesses dias, como não saia de manhã para o tour turístico, resolveu, depois do café, fazer uma caminhada a pé até o Quai d´Orsay (um bom passeio em que na ida caminhou 2,5km). No caminho, na avenue Bosquet parou na tabacaria Cave à cigares. Queria comprar fumo para cachimbo, mas os preços o intimidaram. Ao chegar ao Quai, entrou e ficou alguns minutos no Museu, viu algumas telas impressionistas desinteressadamente (deteve-se alguns segundos n´As Respigadoras, de Millet…). Saindo do Museu, próximo à passarela Solferino parou em uma barraca, um sebo de rua, desses montados pelos buquinistas e que, como os museus, à margem do Sena exalam o odor parisiense. Nele, uma grande quantidade de romances latino-americanos, com destaque para a literatura argentina.

 

Notou, de imediato, uma edição antiga de Facundo, de Sarmiento, que já havia lido na edição em português. Mas ficou particularmente interessado ao ver Abadon, o exterminador, último romance de Ernesto Sabato. Dele havia lido O túnel e Sobre heróis e tumbas, em edições argentinas que havia comprado em Buenos Aires, mas não Abadon, embora soubesse de sua tradução para o português. Tinha enorme apreço por Sabato e ficou realmente surpreendido ao encontrar esse livro numa edição original em Paris, numa barraca de livros entre tantas ao longo do Quai. Com o exemplar nas mãos, deu uma rápida folheada e o comprou. Após o almoço, começou a lê-lo. A leitura, absorvente, cruzou a tarde. Parou só para se preparar para sua fala à noite na Cinemateca. Na volta do evento, retomou Sabato até a madrugada.

 

Diante do livro de Sabato, Paris, sua fala na Cinemateca, Glauber, lhe eram indiferentes. Pouco antes de cair no sono, pensou: “Os argentinos são perturbadores. Ernesto Sábato, o escritor, é ele mesmo personagem em Abadon, o exterminador. Perturba porque isso não é escondido do leitor. Mas o leitor deve saber que não se trata de memórias. Sábato não recolhe experiências vividas para oferecer ao leitor uma imagem do que ele fez ou viveu em uma dada situação. Se assim o fizesse, de modo pouco nobre estaria enganando quem o lê. Pelo contrário, pois há uma sublinha que o transporta para a ficção. Ficção que ocorre porque a fidelidade narrativa revela, justamente, que a verdade do que é narrado existe apenas como blefe. A linguagem é cheia de malícia, pois uma virgula casualmente deslocada, um ponto e vírgula ou mesmo um adjetivo muda significativamente o sentido com respeito à realidade crua do vivido expresso pela memória”. Havia tido experiência similar com Borges, cuja leitura do conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, na adolescência, o deixara paralisado por dias, pois jamais havia lido algo tão perturbador, em que fantasia e senso de realidade se invertem num mundo assombroso.

 

A leitura da Abadon o tomou de assalto; passou os três dias de sua estada na França completamente absorvido pelo livro (após sua fala na Cinemateca, foi com outros participantes do evento ao Café de Flore, onde a discussão sobre o valor dos filmes de Glauber continuou, ele respondia perguntas com enfado e não via a hora de voltar ao hotel). Ao comprá-lo, achou apenas curioso vê-lo no sebo, e tinha tão somente a expectativa de um Sabato por que passaria os olhos – tinha ao lado Cortázar, que sequer foi tocado. Mas a leitura revestiu-se de significado. Não tinha por Sabato o mesmo apreço que por Cortázar; contudo, ele se surpreendeu por encontrar no livro mais uma evidência da pujança de um tipo característico aos escritores argentinos numa obra até certo ponto não exatamente badalada. O que o impressionou sobremaneira foi o grau de imaginação desnorteante num relato pessoal. Era como se ele mesmo houvesse escrito o livro, tamanha a identificação que via na narrativa. “Como é possível ser tão sincero na escrita e, ao mesmo tempo, ficcionalizar experiências que são igualmente sentidas por alguém distante?”, indagava a cada página que lia. Na volta ao Brasil, comprou a edição em português e passou noites lendo as duas edições para comparar passagens que ficaram obscuras na primeira leitura.

 

Comprado ao acaso, num lugar para ele improvável, Abadon o fez sentir como os caminhos da literatura são fortuitos; e como uma viagem, em sua prosaicidade, pode ser surpreendente. “Às vezes, criamos enorme expectativa com o que gostaríamos de ler e ficamos frustrados. Esperava muito de Três tristes tigres, de Gabrera Infante. Com as edições esgotadas, foi-me difícil encontrá-lo, mas com grande esforço passei as páginas até chegar ao final. Restaram-me dele poucas lembranças. Não voltaria a lê-lo. Às vezes, por outro lado, a expectativa é satisfeita. Assim se deu com Lezama Lima, cuja leitura de uma resenha de jornal me apresentou a seu Paradiso, que algum dia pretendo reler. Às vezes, como agora com Abadon, somos atraídos por uma força inexplicável, pois estava completamente fora de propósito esse estranho encontro num momento em que estava preparado para conversar sobre cinema, Glauber…; há um jogo de coincidências no acaso, como quer a psicologia de Jung, que me atordoa”.

De Paris, quando os amigos lhe perguntavam da viagem, o que havia feito, o que tinha visitado, respondia: “num sebo de rua no Quai d´Orsay sequer notei o buquinista e, de forma totalmente imprevista, encontrei Ernesto Sabato”. Um encontro tão inesperado que tudo o mais teve menos importância. Cido, então, com suas citações inoportunas, para emular disse que seu Martín Fierro havia sido adquirido em Montevidéu.

Ilustração: Ernesto Sabato – Franklin Valverde