o_ultimo_deus_-_reproducao.jpgA literatura brasileira, nos vinte ou trinta anos recentes, vive momento paradoxal que, creio, vale ressaltar. Ela – nossos autores – não tem a presença na grande imprensa, na mídia em geral, que imagino ter tido desde o império até os anos que antecederam a ditadura militar (Nesse espaço de tempo, diatribes entre escritores, polêmicas, pois, circulavam para além do circuito em que eles se inseriam). A circulação da literatura não carecia de acolhimento nos guetos acadêmicos, congressos, colóquios ou em eventos midiáticos sazonais como feiras, bienais e congêneres. Em contrapartida, a expansão do mercado editorial, com especial atenção para a produção literária, é uma realidade que me assalta os olhos. Para o público geral culto e curioso, é difícil se manter sempre informado a respeito do surgimento de novas editoras de uma estação para outra (Os catálogos de editoras novas que surgem de ontem para hoje estão abarrotados com levas de escritores que surgem e são vendidos como promessas; e, igualmente, as estabelecidas com os já consagrados que escrevem como numa linha de montagem… [rsrs Milton Hatoum é garantia de retorno para o caixa…]). Eis – assim especulo – uma realidade – como diriam os dialéticos – de nosso tempo.

  Bem, feito o destaque, a se observar, em decorrência, algumas questões. Como, hoje, novos e consagrados escritores são recebidos pelo público em geral? (No meio acadêmico, como em qualquer outra “bolha social”, há as senhas de praxe, que devem ser devidamente conhecidas – caso contrário, não há ingresso.) Como eles dialogam, marcam diferenças, fazem ver pontos de vista, filiações…? Enfim, como tornam seus livros – a produção exposta no mercado – um “acontecimento” que ultrapassa o valor (ou desvalor) propriamente literário? Questões assim me coloco ao ler O último Deus (Editora Rua do Sabão, 175 págs. [Confesso que dela, a editora, o primeiro livro que me cai às mãos…]), de Rodrigo Petrônio. Antes de O último Deus, uma nota breve, que creio convir, sobre o autor. Esta não é sua estreia no meio literário. Seu nome circula nas rodas há uns quinze anos, em razão de sua produção poética: Pedra de Luz e Venho de um país selvagem fizeram-no circular onde, em tempos hodiernos, se visualiza quem escreve: a lista anual do Prêmio Jabuti. De qualquer forma, a forma ficção tem com O último Deus seu debut. A transa literária de Rodrigo, assim, tem estrada percorrida: fez ele Letras na USP, trabalhou como revisor em destacadas editoras, nelas exerceu também a função de editor, e ministra a Oficina de Escrita Criativa Casa Contemporânea. O último Deus, portanto, não é obra de neófito, mas de quem conhece atalhos da escrita e de como ela deve circular para além da letra impressa. De um autor que não é de ontem, O último Deus cria expectativa em quem acompanha o trajeto Petrônio nas lides literárias. Antes de concluir esta nota biográfica, no entanto, um adendo. Faz já alguns anos conheço o culto professor e pensador Rodrigo Petrônio (meu trânsito na filosofia me faz asseverar que a designação “filósofo” é uma armadilha para quem transpassa para fora da caverna platônica…). Sua imagem, para mim, se fixou por meio de cursos na Casa do Saber, colaborações em órgãos de imprensa como o jornal O Estado de S.Paulo etc. Familiarizado com o filósofo alemão Peter Sloterdijk, do qual li Regras para o parque humano, fiquei curioso e quis ler e conhecer com O último Deus veleidades ficcionais de um estudioso do filosofo alemão em terras cá, cujas locuções na Casa do Saber e tais aprendi a admirar e a aprender (cacoete, deveras, da pedagogia deweyniana….). É, mas a leitura de O último Deus me revelou antes de veleidades um polímata e uma dúvida de mão dupla: Rodrigo Petrônio é um estudioso de filosofia que também escreve ficção? Ou, Rodrigo Petrônio é um escritor de ficção que também se dedica ao estudo de filosofia? Ora, a dúvida aqui segue preceito bíblico: como ser servo de dois senhores? Não entendo, por óbvio, que a ficção que li em O último Deus seja desdobramento do “pensamento filosófico” de seu autor (especularia, fosse o caso, assinado por Sloterdijk…). É o caso, não obstante, quando leio Voltaire e seu Cândido, Jean-Paul Sartre e seu A náusea, Albert Camus e seu O estrangeiro, para ficar nesses três filósofos franceses emblemáticos. Como bom polímata, para mim há o escritor culto que escreve ficção e há o estudioso de filosofia que se dedica a Sloterdijk. Uma vez que com as publicações ambos têm vida pública, como eles se encontram para mim é um mistério (Seria tentador ver nas narrativas de O último Deus um narrador que se multiplica como a voz de uma suposta filosofia oculta do autor, mas…).

 

Fico com o mistério e passo ao livro. A primeira coisa que me fez saltar os olhos: o título. Começo com Deus, grafado com letra maiúscula. Por quê? Ao ler as trinta narrativas que compõem o livro, penso como minha impressão seria diversa se estivesse lendo O último deus. Supondo um leitor como eu, para inquietar um leitor assim teria Rodrigo escolhido o uso da grafia maiúscula para gerar incômodo? Creio ser possível. Mas, continuo, não só foi feito uso da grafia maiúscula: o título está no singular: Deus. As narrativas que compõem o livro assumem um viés irônico. Teria então com o título Rodrigo querido perturbar o leitor que visse ironia no que passa a ler? (Deus com maiúscula é o Deus único; com minúscula, um deus) É o que me parece, supondo, claro, ter ele ponderado sobre a obviedade em suas narrativas para algo como o Crepúsculo dos deuses, de Friederich Nietzsche. O último Deus começa na capa externa e na capa interna: a reprodução fotográfica, nelas, de obra da artista Laura Lima: Pássaro. Uma escultura de um pássaro gigante como se caído do céu. No simbolismo da escultura, assim creio, uma possível senha para o leitor refletir sobre o título do livro e as narrativas que estão por vir. Deus, o último, como o pássaro da foto, restou no chão. Tendo essa compreensão, tudo que se vai ler, assim, nada mais é que a destreza de Rodrigo para escrever tendo no horizonte a seta que indica o rumo a ser seguido. O pássaro caído, Deus, encerra em minha leitura o propósito de Rodrigo com as “histórias” que conta. Essas “histórias”, por sua vez, têm o escopo temporal do universo: quatorze bilhões de anos.

 

Nelas, nas “histórias”, alguns pontos cabem destacar: a organização do livro e uma primeira inquirição. Está dividido em três partes: LIBERDADE, ESPELHO, RETORNO (Assim mesmo, em Caixa Alta). Antecedem as narrativas epígrafes sibilinas atribuídas a Shahãb ad-Dîn Suhrawardi, Martin Heidegger, Jean-Paul Friederich Richter, Maitrâyanî-Sanhitâ, Herman Bloch. A observação que fiz para o uso de grafia maiúscula para Deus se repete aqui: por que Caixa Alta? Sobre o teor das epígrafes que abrem as narrativas, a de Heidegger dá um nó: “Se ainda nem conhecemos a morte em seu extremo, como queremos estar à altura da insólita mensagem do ultimo deus?”. Sim, leitor, deus, não Deus… Superado o título, capas, epígrafes, divisão ternária, chegam as narrativas. Trata-se da reunião de trinta “contos” divididos em três seções cujos conteúdos são antecipados pelas epígrafes? (A palavra “conto” aqui tem o sentido da palavra “rosa”, que tanto agradava querelas entre filósofos do medievo: toda rosa é rosa, princípio de identidade aristotélico; mas, o tom de rosa magenta não é o mesmo do de rosa pastel; logo, há rosas e rosas na cor rosa – qual o nome da rosa? o que designa um conto?). Ainda, e para mim surpreendente: LIBERDADE é composta por onze narrativas; ESPELHO por sete; e RETORNO doze (Esperava houvesse equivalência entre as seções, no entretanto…). Para ter uma possível resposta o leitor teria de ampliar seu escopo cultural para além do livro. Uma referência solta de Heidegger impacta aquele pouco familiarizado com o filósofo alemão e cônscio de que Rodrigo estuda filosofia germânica. Malgrado, que nexo haveria entre narrativas antecipadas pela epígrafe de Heidegger e a de Suhrawardi? Deste: “É de mim que trata essa narrativa, pois passei pela catástrofe”. Ler O último Deus sem ter o possível alcance desse nexo – ou da absoluta ausência de nexo – creio ser tão idiossincrático quanto estudar fractais ou teoria das cordas sem qualquer formação técnica em matemática e física. Dito isso, pelo teor sibilino extra narrativo, O último Deus espanta o leitor incapaz de apreender filosofias germânica contemporânea e persa do século XII d.C., da pena do fundador da Escola do Iluminacionismo.   O leitor, sem o nível de erudição com que o livro o desafia, pode à forma da escrita Petrônio buscar filiações que seu texto sugere. Tenho em mente uma primeira aproximação com as narrativas fantásticas dos argentinos Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Ernesto Sabato (Particularmente instigante a narrativa de Homeros, na seção ESPELHO – o débito inconteste com Pierre Menard, o autor do Quixote, inserido em Ficções, de Borges). Como em muito desses escritores, O último Deus exibe situações que escapolem à apreensão lógica: o mundo nos “contos” de Rodrigo, assim como nos dos argentinos, se situa no plano do nonsense, do fantástico. E seus “contos” vão além: neles, se escamba para o grotesco, para o escatológico (doutrina que trata do destino final do homem e do mundo). Os argentinos citados, pondero, oferecem uma primeira aproximação. Outra, que vale realçar, é Machado de Assis. Em Libertarismo: Uma Nova Teoria do Humanidade, também na seção ESPELHO, ecos do “Humanitismo” de Quincas Borba, como expresso em Memórias póstumas de Brás Cubas. Assim como o personagem machadiano, o narrador de Petrônio acredita ter encontrado o segredo para a humanidade. Só que, ao contrário de propor batatas ao vencedor, a Doutrina dos livres ou Libertarismo anuncia que “a liberdade nasce da consciência de que a escolha em servir é a única forma de romper esse samsãra de reencarnações entre dominador e dominado”. Se a escrita Petrônio escapa completamente do estilo condensado machadiano, nesse ponto – Humanitismo/Libertarismo – vejo contato (E, não escapou de meu radar, claro, indagar a respeito da Carta sobre o humanismo, de Heidegger – estou, pois, diante de um autor que explicitamente o cita: assim como Machado satiriza o evolucionismo com o Humanitismo de Quicas Borba, teria Rodrigo querido com o Libertarismo satirizar a Carta de Heidegger e, por tabela, Sloterdijk?). No início desta resenha expus questões sobre o mundo literário. Como O último Deus se confronta com elas? A primeira impressão é que se trata de um Ovni. Meu trânsito no mundo literário é lateral, mas o suficiente para supor que Rodrigo Petrônio dificilmente será lido e terá seu talento reconhecido na mesma proporção em que seu livro se coloca (a régua, seus padrões de medida e precisão têm seus encantos e frustrações). Muito bem escrito, instiga a leitura. Mas, dadas as dificuldades que oferece, das quais dei tímidas pinceladas, não creio ultrapassar o limite da “bolha” letrada. Devidamente inserido na “bolha” (última vez que uso essa palavra, remeto o leitor, justamente, a Peter Sloterdijk, Esferas I: Bolhas), por outro lado, o que nos mostra O último Deus?

 

Para mim, um exercício de escrita altamente sofisticada em que louvo a determinação de Rodrigo Petrônio. Ao mesmo tempo, ele sabe que tem de ter, mas, se não obtiver a posse da senha exigida para fazer esse livro circular fora do círculo letrado, há risco enorme de ficar para estudiosos porvir descobri-lo para um público mais amplo. Esse um capricho cruel para quem cria, mas perfeitamente condizente com o jogo do mercado em conluio com os “formadores de opinião”. No catálogo da Editora Rua do Sabão Rodrigo Petrônio é só mais um escritor ou um autor cuja obra intrigante assinalaria um ponto de ruptura em nossa bastante previsível literatura? Do que li – posso estar enganado –, o propósito de fundo de O último Deus – admitido ou negado por seu autor – não é abarrotar o catálogo de editora que nasceu ontem com mais um escritor que se oferece para consumo e assim ela, a editora, manter as contas em dia. O futuro (sintomaticamente título da primeira narrativa do livro) é contingente; mas amanhã – isso, sim, necessário –, eu, Rodrigo, editores e eventuais leitores não estaremos aqui para vê-lo.

 

Humberto Silva é professor da FAAP, critico de cinema e membro da Abraccine.