O amigo dele, Humberto, lhe disse que ao arrumar os livros de sua biblioteca deparou-se com Marcio Souza, O Fim do Terceiro Mundo. Havia lido Mad Maria – folheado ao ver minissérie global, acentuou – e conhecia a história de Galvez – Imperador do Acre, as polêmicas geradas.

Marcio Souza não é estanho para mim, continuou Humberto para ele; tampouco desperta especial curiosidade: um escritor manauense cujo nome não entra na zona de esquecimento, de lapso de memória. Às vezes, ao acaso, surge com ar de isolamento, na condição de escritor da Amazônia num país que olha na direção do mar e nunca vira as costas. Num país assim, Marcio Souza é único, o único, Humberto lhe fala, que conheci até surgir Milton Hatoum, de quem assegura leu a obra, de quem estava lendo Órfãos do Eldorado, nos momentos de descanso da arrumação dos livros nas estantes.

Atraído pel´O Fim do Terceiro Mundo, queria voltar a Órfãos do Eldorado, assim lhe asseverou Humberto. E num impulso, em vez de pô-lo na estante, reteve O Fim do Terceiro Mundo.

Ao retê-lo, falou Humberto que sua intenção não ia além de ler alguns parágrafos e depois voltar a Milton Hatoum. Queria ver somente como Marcio Souza usa a pontuação: o ponto e vírgula, dois pontos…

Ele ouvia Humberto inicialmente com atenção. A conversa entre eles prosseguiu. Falaram sobre a fortuna de entre centenas de livros na biblioteca encontrar um ao acaso. E que, por algum impulso, atraia uma leitura para a qual, há tanto tempo, o acaso não havia se revelado.

Humberto se pôs a falar sobre O Fim do Terceiro Mundo; como ficou impressionado com a descrição de Manaus feita por Marcio Souza: ácida, terrível, um calor infernal com uma temperatura constante de 32º C vinte e quatro horas. E que, embora desejasse voltar a Milton Hatoum, não conseguia se desgrudar de O Fim do Terceiro Mundo.

Estava cansado, confessa para ele. Muito cansado. Passara a tarde arrumando livros. A noite havia caído. A meia-noite se aproximava e com ela o sono. Pego pelo sono, não conseguiu ir ao fim d`O Fim do Terceiro Mundo.

Ele perguntou se Humberto conhecia Manaus. Não, foi a resposta. Ele então, já sem tanta atenção ao que Humberto falava, lembrou de uma rápida passagem por Manaus.

Uma conexão aérea. Vinha de Santarém para São Paulo e se reteve uma manhã e começo de tarde em Manaus. Por alguns instantes, desatento com o que Humberto falava, tentou compor suas impressões e as de Marcio Souza que ouvira: “Uma cidade com calor infernal”.

Humberto continuou falando. O assunto havia mudado. Passou a comentar sobre escritores brasileiros que foram bastante lidos, aguardados quando era jovem, e que com o tempo caíram no esquecimento.

Ouvia, ele, Humberto; mas já sem atenção. O assunto não lhe era enfadonho, só que enquanto Humberto não parava de falar, ele meneava a cabeça e emitia leves grunhidos para fingir acompanhá-lo; e assim voltou a lembrar da curta estada em Manaus, de Santarém, dos dias de final de ano passados em Alter-do-Chão, do que nesses dias registrara em seu diário…

“Se formei alguma imagem mental da Amazônia? Não nego que aqui em Santarém essa imagem se diluiu. A imagem presente daquilo que imaginamos é, invariavelmente, decepcionante. Não que Santarém e também Alter-do-Chão fossem tão diferentes do que eu imaginava. Nada tão igual tampouco tão diferente. Nenhuma coisa nem outra, mas estranha e misteriosamente familiar.

Santarém e Alter-do-Chão, caso eu fosse acordado de um torpor, bem poderia me confundir com um lugar qualquer do sudeste asiático. Desatento, sim, confundiria. Lembro da praia Ao Maya, na ilha Ko Phi Phi Le, na Tailândia, devastada por um tsunami três, quatro anos atrás. Sim, aqui em Alter-do-Chão algo próximo. Digamos, sem a presença chinesa, sem a presença indonésia, indiana e com isso, um ou outro detalhe – o perfil humano, a arquitetura ao redor –, logo me falsearia a impressão inicial de semelhança. Aqui é quente! Muito quente! Creio que sim… (27/12/…).

O chato, o enfadonho, não é não ter o que fazer. Sempre, mesmo na cela de uma cadeia, pode-se fazer uma canção. A sensação de enfado bem pode vir da percepção de que o tempo flui, indefinido, numa contagem que mesmo com a canção se torna regressiva (nisso certo mal-estar com o translado do ano). Tudo é tão cheio de vida quando cada momento é vivido como se fosse único, na irrefreável repetição vivida.

Ontem praticamente repetiu anteontem. Hoje, talvez, com grande possibilidade se repita…; amanhã, por que não, o mesmo: café da manhã seguida de ladainha matinal; preparativos intensos para o passeio na Ilha dos Amores; todos os detalhes ritualisticamente repetidos: caminhada lenta e compassada até a canoa; o canoeiro e seus gestos mecanizados nos conduz até a ilha; montagem da estrutura: esteira, cadeiras, protetores solares…; o almoço num quiosque; mais alguns minutos e a volta… Tudo tão belo, tão lenta e protocolarmente repetitivos. (28/12/…)

Aqui, de qualquer forma, me apraz a decisão que tomei: nada ler, nenhum contato com algo que minimamente me lembre a existência de livros. Aqui, sem pensamento, o tempo flui; livre, como a correnteza. A água, a densa floresta, e a expectativa de calor nos trópicos. Todos no quiosque, o mesmo d´ontem, no ritmo das ondas do rio, e assim, no ritmo compassado das águas, degusto fatias de Pirarucu esperadas quase uma hora. (29/12/…)

Hoje mais um dia repetitivamente estranho. O estranho estrangeiro. Aqui sinto como é me sentir O estrangeiro: Camus, lido por Caetano preso antes do exílio. Há diferentes formas para se sentir O estrangeiro. Um oráculo, o I-Ching que ficou em São Paulo, nada mais é que Inconsciente Coletivo jungiano. Eu estranho entre estranhas coincidências no reino das possibilidades. (30/12/…)

Acordamos com o que se chama “tempestade tropical”. Não é muito diferente de uma chuva forte em São Paulo não seja pelo fato de que a água cai como se despejada por uma caixa d´água de 5 mil litros por um tempo que se perde no tempo. Em São Paulo uma chuva forte, muito forte, não passa em seu momento de maior intensidade de quinze, vinte minutos. E então vai aos poucos diminuindo a intensidade, mesmo que a chuva demore muito até parar. Aqui, em Alter-do-Chão, no coração da Amazônia, o volume intenso d`água não para duas, três horas depois que despenca. A água cai como se toda água do céu estivesse sendo despejada ao mesmo tempo.

A tempestade tropical, no entanto, pelo menos para mim aqui, não causa nenhuma apreensão. Dela aguardo o tempo de parada sem imaginar que cause estragos notáveis com deslizamentos, casas soterradas, mortes na enxurrada ansiosamente esperadas pela imprensa sensacionalista. E a parada é abrupta; sem meio termo, a água cessa de jorrar. Nessa época do ano chuva assim é frequente, oiço dos habitantes de Alter-do-Chão no café.

Com a chuva, a temperatura decididamente não cai. É sempre a mesma, quase sem alteração. Dissipa-se, contudo, a sensação de estufa; que logo no correr do dia volta a ser sentida. O sol tropical, passada a tempestade, não demora a dar o ar da graça com intensidade exuberante. (31/12/…)

Primeiro dia do ano. De todos, meu melhor em Alter-do-Chão. Ficasse só hoje, teria valido o chão que cobri desde Sampa até aqui. Toda expectativa que formei do Centro Norte do país – na Amazônia –, cá experimentei. O vizinho ao lado manteve durante o resto que me resta de memória todos os decibéis tão elevados que… O som? Sim, para quem cá está e imagina o Caribe, podia suspeitar estar em Trinidade e Tobago ou nas Bahamas.

Cultura é legal, vista de longe. Sob o crivo da intelectualidade oficial e o exotismo assume ares de curiosidade etnológica num misto de local e absorção de signos da indústria cultural. O som alto, a atmosfera, a impressão de Caribe, de que para olhos exóticos pobreza cultural e pobreza econômica dão as mãos.

Nada disso! No calor infernal, o som alto, tão alto quanto em Porto Príncipe… Aqui é o Caribe, e os desculturados não foram avisados por que… Alter-do-Chão: o Caribe na Amazônia.

Hoje foi o melhor dia porque direi na volta a Sampa, sem entrar em detalhes, que estive no Caribe. (01/01/…)”

– Marcio Souza, O Fim do Terceiro Mundo, e penso como o tamanho do Brasil me assusta, disse Humberto; tenho a sensação de que a Amazônia é tão ignorada quanto a Sibéria, completou.

– Nossa história, redarguiu ele, sobre integração nacional, desde o Império com as lutas pela manutenção da unidade, tem ares de romance do realismo fantástico: peruanos, colombianos, venezuelanos tão próximos da nossa Amazônia e…; fronteiras que não foram traçadas com régua e esquadro, como na África Neocolonial. Sim, continuou ele, Marcio Souza eu não li, embora eu tenha curiosidade sobre Galvez – o imperador acreano por causa do alvoroço com um desses personagens de nossa história que tão poucos conhecem e permanecerão sem conhecer. De Milton Hatoum? Só Relato de um certo Oriente. Bom início. Mas não quis ler os outros dele. Acho que Milton Hatoum ficou muito presunçoso. Virou celebridade literária. Órfãos do Eldorado? A casa editorial sabe que Eldorado é um imã e atrai o imaginário; por isso, a sacada publicitária para cumprir meta de vendas.

 

Ilustração: A chuva – Franklin Valverde