Você disse que seu amigo tem uma cachorrinha chamada Chiquinha. Cachorrinha, Cachorrinha, Cachorrinha… uau, uau, uau… A cachorrinha latia quando ele chegava.
“Nada como ter uma cachorrinha e brincar com ela todos os dias no quintal em que ela não fazia outra coisa a não ser passar os dias”, pensava seu amigo sempre que chegava ao quintal e a cachorrinha Chiquinha vinha e subia em suas pernas e lambia seus braços, enquanto ele jogava a Chiquinha de um lado pro outro, e ela ficava ofegante depois das brincadeiras de sempre.
E seu amigo, como sempre, você disse, gostava de contar casos da Chiquinha toda vez que você se encontrava com ele. No dia-a-dia, às vezes, seu amigo trabalhava no bar do pai dele e ele ficava no balcão e também uns rapazes que dia sim e outro também ficavam no bar, jogavam sinuca, bebiam cerveja, mexiam com as minas que passavam na rua, falavam de futebol…; às vezes seu amigo se recolhia para afazeres diários da escola, ele que só ele ostentava livros nas horas em que não estava no bar no lugar em que morava e lia histórias de acontecimentos do passado; às vezes, se cansava ao cruzar a cidade: ônibus, ônibus + ônibus, ônibus + metrô + ônibus – alguma coisa como superar distâncias com e sem os pés. Já a Chiquinha no quintal ficava à sua espera. E ele, quando via você três ou quatro vezes por semana, você que estudava com ele na mesma escola, falava da Chiquinha.
“Vida de cachorro é boa; nada de ficar em ônibus +…, coisas que nós humanos todos os dias fazemos, todos os dias e às vezes também…”, assim pensava ele, você dizia; pois ele não tinha carro e tinha de estudar longe do quintal em que ficava a cachorra Chiquinha.
Entre casos e casos que seu amigo contava da cachorra Chiquinha, sempre alegre, brincona, pulava, lambia, balançava a cauda. A alegria canina é diferente e sempre alegre com ela, você disse que seu amigo disse ter visto um dia uma ferida, pústula, bostela, na cauda da Chiquinha, que sempre alegre vivia e mexia a cauda pustulenta.
Pensava, na verdade, seu amigo, no início, que não se tratava de uma ferida purulenta. E Chiquinha nada reclamava, sempre alegre mexia a cauda com a ferida, que nem parecia uma ferida e sim uma berebinha, uma bostelinha que sararia e desapareceria logo e ele nem ia notar. Com o tempo, contudo, a berebinha pestilenta da Chiquinha não desapareceu e se avolumou, se avolumou e seu amigo, que nunca levava a Chiquinha prô veterinário ficou velhaco.
“A ferida da Chiquinha não sara! Já faz um mês…
”A ferida contornava a cauda da Chiquinha no meio caminho entre a ponta e o orifício anal. E com o tempo a berebinha virou um carbúnculo hemático que se expandia, expandia. E a Chiquinha, que antes não reclamava, começou reclamar.
“Caramba! Com tanta coisa pra fazer eu e agora tenho de toma conta da Chiquinha; aqui ninguém percebe que ela tá com uma ferida que cresce, cresce…; olha como está o rabo dela? Assim ela vai ter uma gangrena e morrer se ninguém cuidar; vai morrer, coitada. Chiquinha! Chiquinha! Chiquinha! Vem, vem, vem aqui Chiquinha, vem aqui…”
Chiquinha, entrementes, não estava mais tão alegre; não balançava a cauda quando ele chegava no fundo do quintal e choramingava pra ele brincar, ããã… ããã… ããã; agora, depois de mais de mês convivendo com a ferida na cauda em estado putrefato, a Chiquinha vivia reclamando, uhm, uhm, uhm…; Chiquinha uivava de dor; Chiquinha não balançava a cauda como antes.
E a preocupação de seu amigo, você disse, foi aumentando porque para ajudar a Chiquinha, coisa que só ele podia fazer, ele tinha que deixar de lado a arrumação de todos os dias; que não era pouca, pois além de tudo seu amigo costumava cruzar a cidade para ler algumas historinhas de acontecimentos do passado.
Depois de três meses a Chiquinha com a ferida pútrida, você disse, ele comprou Bactrovet Prata AM para medicar todas as noites antes de dormir a cauda com a ferida envolta em putrescinas da Chiquinha. O remédio, um spray, era aplicado de forma rotineira na ferida para eliminar sangramentos e causar efeito adstrigente e hemostático para formar uma película protetora e sarar a Chiquinha. Mas a ferida, você disse que ele disse, já estava muito avançada na sua necrose e que moscas varejeiras sobrevoavam insistentemente em volta da cauda pestilenta da Chiquinha. E você disse que ele demorara bastante pra procurar um médico de cachorro para examinar o estado da cauda da Chiquinha. Coitada, ela não mexia a cauda, alegre como antes.
“…os remédios não fazem. efeito… caramba! Coitada, como a Chiquinha está triste”, pensava seu amigo, que esperava o pior.
Uma noite, como todas as noites antes de dormir, seu amigo, como habitualmente com a ferida da Chiquinha, arrumava o cantinho onde ela dormia, deixava ração, medicava-a e ia dormir. Seu amigo, você disse que ele disse, já não tinha esperança de voltar a encontrar a Chiquinha no quintal balançando a cauda e lambendo as mãos dele…
Na manhã seguinte, ele acordou e foi ver a Chiquinha, que lambia o toco de cauda que lhe restara, depois, você disse que seu amigo disse, de amputar parte da cauda à noite com seus dentes caninos.
“Caramba! Ela comeu o próprio rabo…”, exclamou assustado seu amigo. Chiquinha, alegre, como antes da ferida purulenta, parou de lamber o toco de cauda que restou e jogou as patas em seu amigo, como fazia antes da ferida que no início parecia uma berebinha que depois virou um carbúnculo hemático. Seu amigo então, depois do susto e incredulidade, pensou nos segredos insondáveis da vida animal. E você contou toda a história em momentos diferentes, sempre rindo do que os animais são capazes. E a cachorrinha Chiquinha, agora sem bom pedaço da cauda…
E na verdade bem se poderia pensar que a Chiquinha bem sentia o momento, o exato momento, em que iria amputar a cauda por causa da pústula cada vez mais putrescível ou, se não fosse o caso, não amputá-la. Mas seu amigo, você dizia, e o médico e nós humanos, sempre imaginamos que os animais não sabem e precisam de remédio que nós humanos fabricamos e que não melhoraram o estado pustulento da cauda da Chiquinha.
A cachorrinha Chiquinha, você disse que seu amigo disse, morreu anos depois, no alto de sua velhice canina, de morte outra estranha à pustulenta ferida que lhe custou pedaço da cauda.
Ilustração: Chiquinha – Franklin Valverde