a_mesa_-_franklin_valverde.jpgTinha antes uma mesa no meio da cozinha. Nela, espalhados, livros, papéis com anotações, lápis, canetas, tudo pouco mexidos na desordem que se avolumava até o ponto no qual praticamente tinha dificuldades para recolher um livro, consultado quando a mesa ainda não estava tão desordenada, e que ficara no fundo de uma pilha enorme. A cadeira não era exatamente confortável, mas a altura da mesa e certo senso de disciplina desmedida compunham os elementos básicos da cena (desnecessário dizer que tinha de si mesmo a imagem de São Jerônimo, que tão bem se serviu à iconografia ocidental e entre tantos inspirou telas e gravuras de Albrecht Dürer, em especial São Jerônimo em sua cela, na qual o ideal de recolhimento carrega o sentido de solidão existencial). Seu cotidiano era ditado pelo tempo em que, sentado à mesa, lia e escrevia de modo compulsivo por horas.

 

De modo que lhe era absolutamente hostil tudo que circundava o espaço onde se detinha para se ater em monólogos infindos sobre uma frase lida, sobre a lembrança de um episódio vivido ou sobre a imperativa necessidade de sair de seu isolamento e se haver com o burburinho da vida pública. O limite de sua solidão procurada era determinado pelas necessidades de sobrevivência: precisava, para ter o tempo de que dispunha alheado do mundo, enfrentar as agruras deste, o qual tanto o desagradava, mas do qual não tinha como escapar.

 

Era professor de filosofia, com especial interesse por temática teológico-religiosa. E o tempo em que podia ficar consigo mesmo era calculado. Nesse sentido, agia metodicamente: nenhuma perturbação que pudesse interferir em suas meditações. Sabia, pois, que não podia viver enclausurado o tempo todo. Tinha plena ciência de que quando saia de seu claustro trombava com os humores e caprichos do mundo; por isso, como todos que vivem em sociedade, não lhe cabia senão a representação de um papel social: lidar com as pessoas de forma aprazível e conveniente, nada que afrontasse as convenções sociais e assim perturbasse seu espírito.

 

Embora regulasse a vida em função do tempo em que podia se recolher, lhe era prazeroso o contato com os alunos. Principalmente quando sentia em algum deles disposição especial para questões filosóficas. As aulas lhe propiciavam o prazer do desafio, do embate de ideias. Fora de sua cela, o que mais o deprimia eram as manifestações de futilidade, era sentir como a vida das pessoas em sua mundanidade se assemelha à morte. Recolhido, conjecturava: “Gosto de me isolar e, ensimesmado, ficar com meus pensamentos por um tempo em que não sinta necessidade de olhar para o relógio; não gosto de me sentir socialmente coagido a fazer aquilo que não quero: comemorações, cerimoniais, eventos sociais, compromissos e protocolos familiares me deixam frequentemente entediado”.

 

Ficar na cozinha, sentado à mesa, nunca o cansara demasiado. E assim, muitas vezes não percebia, passava horas e horas a ler e escrever sentado à mesa. As pausas eram ocupadas para preencher a fornalha do cachimbo, cuja fumaça, nas horas retido à mesa, incensava o ambiente com odores que, na mesma proporção, a muitos agrada e desagrada. Na cadeira, à direita, sempre ao alcance o pote com tabaco, que a cada três ou quatro dias recebia nova porção. Fumar cachimbo sentado… A porção de fumo que cabe na fornalha é queimada em 20 ou 30 minutos. Durante a pira, por vezes, restava alguns minutos absorto diante das formas assumidas pela fumaça, a qual, volátil, tem todo o espaço a seu dispor.

 

À mesa, a bem da verdade, o sentimento de domínio absoluto da absorção do tempo em inelutável solidão (só, ouvia música: Beethoven, Mahler, Dvorák, Schöenberg… “Sempre que ouço um compositor, sou motivado por algum acontecimento que me impele a ouvi-lo: uma lembrança, uma imagem. E nunca ouço música com alguém ao lado ou algum estímulo que me desvie a atenção: ouço-a, apenas isso). A mesa, em sua rígida concretude, era verdadeiramente um Aleph: nela cabia uma história universal da infâmia; nela, guardava parte do tempo, alheio ao exterior; nela, refletia sobre os mais variados temas, situações da vida…: “Fulano morreu, e imagino que sou ele em seus derradeiros suspiros…”, ou ainda “Erro, quando acredito errar, e igualmente erro, quando não espero o erro”.

 

Dormia pouco, não mais que quatro horas de sono. Acordava religiosamente às 5h30 e nunca ia para cama antes da uma da madrugada. Depois de se levantar, tomava banho, vestia roupas apropriadas para passar o dia, mantinha as cortinas da janela da cozinha fechadas, fazia café, comia um pão amanhecido com algum frio, e imediatamente se sentava à mesa. Tinha, claro, da noite anterior, leituras esparsas que havia iniciado – romances, biografias, livros de história ou guias geográficos –, e nelas se retinha por algum tempo. Assim, com a música num som conveniente, enquanto lia pensava em como ordenar, de acordo com as prioridades, a sequência de afazeres do dia. Nesse momento, a música o dispersava, mas logo era sobressaltado pela rígida agenda mental com a qual convivia e estabelecera. Desligava o som e recolhia, então, o livro com o qual estava trabalhando.

 

Durante o dia, a claridade intensa o incomodava, apesar de as cortinas permaneceram fechadas o tempo todo (por isso, entre as estações do ano, tinha predileção pelo inverno, quando os dias são mais curtos e muito frequentemente o sol não aparece; e, embora onde morava os invernos fossem secos, causava a ele imenso prazer quando acordava e via que uma leve garoa impediria o surgimento do sol); ao cair da noite, na maior parte do tempo, mantinha a visão com ajuda de um foco de luz que provinha de uma velha luminária envolta nas pilhas de papéis e livros. Após a ferrada leitura de livro para uma aula próxima, tomava o caderno de anotações ao lado para destacar o que lhe era importante e pontuar os tópicos de sua fala – e também para reter um pensamento avulso qualquer. Antes do fim da tarde, para desanuviar, voltava a ouvir música e pegava um livro de poemas ou um romance ao acaso. Essa leitura vespertina era feita na cama; distante, pois, da mesa. Nesse momento, em algumas ocasiões, tirava rápida soneca, nunca de mais de 20 minutos. Na verdade, era um cochilo alongado, quando sentia que as letras do livro começavam a desparecer e não conseguia entender direito o que lia. Ao tomar consciência de que mais dormia do que lia, despertava, tomava café e voltava ao trabalho.

 

Apesar de que se pudesse imaginar a mesa apenas como espaço de trabalho, isso de fato não ocorria. A mesa também era o lugar de refeições, onde pousava o copo no café da manhã e, quando recebia visitas (ainda que estas fossem muito raras), servia também para dar repouso a pratos e bebidas. Nesses dias, uma arrumação geral para não misturar antepastos e poemas. A mesa servia-se como móvel de escritório, cozinha e sala de visitas. Era, de fato, uma mesa grande, 250 cm x 100 cm, de modo que podia acomodar livros papeis e pratos. E lhe agradava especialmente sua solidez, pois de madeira maciça tampo inteiro angelim pedra 5 centímetros, pernas em xis, amarradas pela trava… Para um olhar externo, estava sempre desarrumada, tudo depositado nela sem qualquer critério. Mas ele se sentia bem assim, e quem eventualmente fosso visitá-lo jamais a encontraria vazia. A desorganização, é certo, tinha para ele o sentido de controle. Sabia o que nela estava e, caso lembrasse de algum livro não lido há algum tempo e que gostaria de consultar – isso ocorria quando, numa leitura, era feita uma referência…, ou quando, num lapso, tinha a memória despertada para… –, pensava: “onde está… preciso dar uma olhada…”.

 

Assim, por mais bagunçado que parecesse, tinha controle de todos os livros. Os que não necessitava ficavam depositados num quarto contíguo, por onde acessava por uma passagem tão estreita que tinha de esfregar o corpo na parede e encolher a barriga para não ficar entalado em um corrimão, que restara de um improviso arquitetônico. Nesse cômodo ficava também o computador (quando este era utilizado, abandonava a mesa, mas isso só ocorria depois de exaustivas notas nos cadernos de anotações; isso porque, não obstante por vezes gostasse de simplesmente contemplar os livros nas estantes, não tinha o hábito de se reter por muito tempo na frente do computador) e, com os livros empilhados e recostados uns nos outros, não havia espaço para uma mesa como a que havia na cozinha; não havia sequer espaço onde pudesse pousar um copo de café.

 

Restava, portanto, ler e manuscrever à mesa, na cozinha, e digitar no quarto, quando fosse o caso. Esse um ritual que se repetia, que se repetia…; e que, por isso, parecia um ciclo natural. Ciclo que assim se completava: além do café da manhã, uma leve salada com peixe de água doce ou ave, por volta da uma da tarde, era o que precisava para se manter alimentado (detestava ter que parar a leitura para fazer a salada; por isso, às vezes, chegava a ficar até quinze horas sem por nada na boca); e à noite, como não jantava, uma ou duas frutas extraídas da fruteira lhe bastavam.

 

Um objeto pelo qual nunca efetivamente percebera presente (não dava atenção, de fato, à existência de objetos materiais, mesmo livros não lhe despertavam nenhum fetiche – além, claro, do que continham –, a mesa, assim, tinha para ele tão só utilidade). Como outros pertences na mobília desornada, era apenas um móvel feito de madeira, adquirido dos restos de outra existência em desatino… Tinha-a para logo substituí-la, como muitos livros que com o tempo, sem espaço, perderam-se sem aviso, emprestados a amigos de ocasião ou a alunos; mas assim não se deu, assim passaram-se anos… Com isso, a existência da mesa dizia que nela podia empilhar papéis, livros…; ela ali estava e nada a indicar que precisava se fazer percebida para além de sua presença material; ali ela estava, imóvel, por muito tempo, compondo a mobília da cozinha, ao lado de copos, pratos, panelas, uma toalha encardida, uma máquina de lavar às costas, o fogão à esquerda… Tudo era ao mesmo tempo familiar e discreto em suas existências.

 

A mesa era tão só um móvel, como a geladeira, que ganhara de uma tia que havia comprado uma nova; mas ela guardava o que lhe era caro, sua existência silenciosa lhe permitia se proteger do mundo exterior e no conforto que lhe cabia, entre uma e outra baforada no cachimbo, um pensamento solto: “Há certa letargia, por vezes, em meus movimentos, meus pensamentos… Tudo e todos ao meu redor parecem girar num ritmo diferente, mais intenso, mais rápido, frenético. Isso me incomoda, pois tenho a sensação de falar sozinho a respeito da paisagem por que todos passam despercebidamente”. Nunca, tanto tempo assim, a sensação de estranhamento; assim, simplesmente, durante anos, aquele espaço foi seu quartel-general, e nele a mesa, e nela, naquela desorganização, organizava o cotidiano: um dia, outro dia, depois outro…; a mesa e tudo que nela fazia parte.

 

Ilustração: A mesa – Franklin Valverde