Aguardava com ansiedade os jornais todas as manhãs. Um rito que se repetia há mais de duas décadas. Assinava, então, dois matutinos com perfis ideológicos distintos, pois procurava ver o mundo sempre de uma perspectiva que negasse suas crenças mais fundadas. O matutino conservador lhe mostrava como é fácil esconder as misérias embaixo do tapete e não expressar qualquer sentimento de culpa pelo conforto que alguns poucos podem gozar, visto que as desigualdades do mundo são da natureza humana… O matutino liberal fingia pluralidade de opiniões, a voz era dada a todos e todos tinham nele espaço de expressão, desde que não defendessem…
Lia ardorosamente os editoriais, sabendo de antemão o que cada um deles diria, uma vez que o editorial só confirma o que dele se espera, e isso nunca é mais do mesmo (o matutino conservador nunca expressava um ponto de vista que não fosse conservador, e o liberal nunca igualmente…). Seu interesse por notícias ou reportagens ou entretenimento era praticamente nulo (via jornais na TV por inércia; não dava a mínima importância); passava por elas rapidamente, com sofreguidão indisfarçável (quando não havia internet, e com ela portais e as redes sociais, as notícias em um matutino podiam ter importância, embora ele assim não pensasse, com a internet, contudo…). Tudo lhe parecia tão cheio de lacunas, hiatos, distorções, como em uma peça de ficção cuja verdade é que é tão somente ficção: na sociedade de espetáculo, a morte de uma jovem grávida por bala perdida é espetacularizada, tanto quanto a fofoca sobre a vida sexual de uma celebridade ou o jogo de futebol de um time grande que caiu para a série B do Brasileirão. Assim, depois dos editoriais, a expectativa de ler os colunistas era uma de suas manias. Deles não procurava extrair qualquer verdade, mas era fascinado pela escrita, pelo estilo com que punham suas opiniões sobre assuntos diversos (cultura, política, comportamento…), assim como, e isso também o fascinava, podiam abrir horizontes para uma percepção da realidade que lhe era intangível. Durante anos à noite, antes de dormir, imaginava o que seus colunistas preferidos iriam escrever. Na verdade, os acontecimentos mais marcantes antecipavam o assunto, como se uma pauta estivesse adrede estabelecida. Era só conferir e ver o que o colunista do dia escreveria. Quintas e domingos, durante anos, a coluna de Paulo Francis, que em momentos diferentes escreveu nos dois matutinos que assinava, era das mais aguardadas. Por isso, foi com espanto que ouviu:
– Morreu aquele…., aquele que fala na Globo…, aquele jornalista esquisito…
– Qual? Indagou em tom de espanto e na tentativa de recolher pela memória dados que o levassem a formar uma ideia de quem teria morrido.
– Aquele, que tem a voz estranha…; parece que fala com um ovo na boca…
Sim, sim, sim…, já sabia que era ele…
– O Paulo Francis?
– Eu não sei o nome dele…, vi só a notícia…, mas acho que é esse mesmo…; ele falava assim: “nooossas dííívidas estão aumentaaando, o Brasil…” E fez gestos para mostrar como a dicção dele acentuava a sensação de estar lendo um texto pronto em ritmo acentuadamente pausado. Não demorou e logo confirmou a notícia.
Para ele, leitura de jornal era como uma reza matinal; retirava-o da pasmaceira do dia-a-dia. A leitura de jornais punha a ordem do dia em marcha. Por isso, acordava, abria a porta, observava inicialmente se o jornal não havia sido destruído pela cachorra (Laika, em homenagem a cachorrinha soviete que, na corrida espacial, foi para o espaço no Sputnik 2), o recolhia próximo ao portão e dirigia-se ao sofá, onde folheava páginas, lançava os olhos para as diversas colunas diárias e encontrava Erico Veríssimo, Carlos Heitor Cony, Marcelo Coelho, Ruy Castro, Sérgio Augusto, Elio Gaspari, Jânio de Freitas, Luís Felipe Pondé, Inácio de Loyola Brandão, Marcelo Rubens Paiva, Ferreira Gullar, Milton Hatoum, Lucia Guimarães, Danuza Leão, Barbara Gancia, Marcia Tiburi, Daniel Piza, Ugo Giorgetti, Antero Greco, Paulo Vinícius Coelho, João Marcos Coelho, Diogo Mainardi, Antônio Prata, Gregório Duvivier, Ivan Lessa, Mario Sergio Conti, Humberto Werneck, Nando Reis, Rodrigo Bueno, Reinaldo Azevedo, Luís Fernando Veríssimo… Ao longo de mais de duas décadas, todos de algum modo lhe despertavam curiosidade. O tom sarcástico de Gaspari, que exibia sua incredulidade frente à bizarrice do mundo político por meio de Eremildo, o idiota, o fez crer como os caminhos do patético são insondáveis e podem ser apresentados de forma mordaz. Sou um idiota, por isso não sei que não é para dizer que o rei está nu, quando ele está nu e todos dizem que ele está vestido. Ruy Castro o surpreendia com nomes da música popular – norte-americana, brasileira… – que imediatamente ele procurava ouvir.
Todos os dias gastava horas lendo as colunas dos matutinos que assinava. Mas, estranho, depois de tantos anos, o jornal começou a falhar na entrega ao menos uma vez ao mês. Sem qualquer aviso, um dia no mês, como habitualmente fazia, levantava, abria a porta, ia ao portão e não encontrava o jornal. Isso deixava-o profundamente irritado. A leitura dos jornais era uma espécie de toque. Algo que se não o fizesse lhe alteraria o humor. Perdia a concentração para as tarefas cotidianas se não lesse seus colunistas. Por isso, o desconforto com a inesperada morte de Paulo Francis. O momento dedicado à leitura dele ficou vago. Precisava reajustar sua disciplina de uma maneira que o perturbava imensamente. Esse idiossincrático traço de caráter o deixava perdido. Por tanto tempo, no mesmo horário matinal, sempre abria o jornal da mesma maneira, passava as folhas do mesmo modo e lançava o olhar para seus colunistas como o católico que vai à missa dominical e assiste à eucaristia, sabendo que esse sacramento é a renovação do sacrifício de Jesus Cristo no Calvário. Quando a entrega do jornal falhava, portanto, ele não sabia o que fazer. Qualquer outra leitura que o estimularia em outra ocasião, em outro horário do dia, tinha um sentido diferente, pois não conseguia manter o foco no que lia pensando no que o colunista que não estava lendo teria escrito naquele dia. Sempre havia, como ocorrera em outras ocasiões, possibilidade de a cadela tê-los despedaçado (quando isso ocorria, e via os pedaços dos jornais espalhados, ficava na torcida para o que restara intacto, pois esperava justamente que a cadela tivesse destruído as páginas com notícias, anúncios…). Uma revista geral pelos cantos onde ela o teria destruído e ver o que restava. Insucesso! Os vestígios eventualmente deixados por ela não deixavam dúvida. Não os havendo no meio do quintal…
Uma ou outra ligação para notificar os matutinos… de que o rapaz não entregara o jornal e o atendimento padrão…; às vezes, no entanto, a falha não era notificada: os jornais não vieram, mas lhe era cansativo pegar o telefone, ouvi um som metálico que era para digitar 1 se…, 2 se…, 3 se…, 4 se…, 5 se…, e ao digitar 4, que dava acesso a reclamações, ouvir que era para digitar 1 se…, 2 se… ou esperar para ser atendido; digitava para ser atendido, o telefone tocava, tocava, tocava e ninguém atendia…; depois que a ligação caia, voltava a repetir o expediente e …, … caia novamente; voltava a repetir em estado de irritação e…; quando finalmente chegasse à atendente, uma voz humana fria como uma geladeira, dizer que o jornal do dia não havia sido entregue e ouvir:
– O jornal … (…) pede desculpa pelo transtorno…; a entrega será normalizada…
– Sim, mas no mês passado o jornal também falhou…
– Quando é assim o Sr. liga pra avisar e os números que falharem serão repostos no final da assinatura… A atendente não sabia – ela, burocrática, apenas repetia de modo protocolar as orientações que recebera – que ele antes de dormir havia pensado no que o colunista daquela manhã teria escrito, e que aquele momento do dia era o da leitura, e que passado o momento o jornal não mais o interessava. Não era para ele, assim, mera questão de reposição física do jornal. Tendo passado aquele momento, para ele, num arroubo de extravagância, era como se jamais voltasse a ver a amante, pela qual, em ritmo de aventura, ele havia se exposto a situações hilárias; e que essa mesma amante, casualmente, cruzasse seu caminho numa situação inoportuna.
As falhas, no entanto, foram se tornando mais frequentes (com isso, ele ia dormir tenso, antecipava que a manhã seguinte seria mais uma manhã sem ler…; sofria por antecipação; ia para o quintal já com o prenúncio de que o lugar onde os jornais eram lançados pelo entregador estaria vazio). Antes, ao menos uma vez ao mês, com o tempo, uma vez cada quinze dias…, uma vez por semana…, duas vezes na mesma semana. Acordava, levantava e não mais tinha certeza de encontrar os jornais e lançar o olhar para as colunas diárias.
“Fui ao portão e vi que o jornal mais uma vez não chegou, como habitualmente nos últimos meses pelo menos três vezes por semana. É uma segunda-feira, poderia, se o entregador não falhasse mais uma vez, abrir a última página do Caderno*** do Jornal*** e ler a coluna do ***”, murmurou, com ar tenso. “Sei que posso lê-lo no computador…, mas…” Ele, no entanto, vai ao computador, aguarda o descarregamento dos programas, vê surgir na tela o ícone Wireless – onde mora, afastado do centro urbano, não há internet a cabo, por isso tem como recurso o que é oferecido por satélite… –, digita no…, ativar…, depois o Google Chrome…, o UOL… e desponta o jornal*** na tela do computador, onde no Caderno*** ele lê a coluna de ***.
“***, como antes Paulo Francis, é o cronista que mais tenho curiosidade ler. No começo, lia-o apenas por curiosidade, para saber se iria concordar com ele. Os argumentos de *** geralmente são concordantes com o que penso, mas lê-lo me causa irritação. Ele tem a incrível capacidade de estabelecer uma cumplicidade em que qualquer de seus leitores não passa do mais evidente idiota”. Assim pensava sobre a coluna que com o tempo não mais podia ler no jornal impresso. Ir ao computador e ler a coluna não era um rito com o mesmo significado que aquele no qual abria o jornal, folheava suas páginas, lançava um olhar geral numa página com diversos assuntos, via na última página a coluna… As constantes falhas na entrega dos matutinos o levaram a lê-los no computador. E essa era mais uma de suas idiossincrasias. Tinha enorme dificuldade para lidar com alternâncias abruptas do cotidiano, ficava atordoado com o inesperado, com o que quebrava um rito que o impulsionava a fazer metodicamente o que havia programado. Mas em igual medida, se as circunstâncias se revelassem tais que tivesse a plena percepção de que não podia fazer o que lhe era habitual, se ajustava comodamente à nova situação. Notou, por suposto, que as falhas na entrega dos matutinos tinham algo de kafkiano. K, um agrimensor, é chamado por um conde para lhe prestar serviço, mas, por mais que tente, não consegue entrar no castelo nem saber que serviço seria prestado; os personagens com os quais cruza são imprecisos nas informações que lhe são passadas, se contradizem e K se vê envolto no absurdo. Não sabia, ou tudo lhe parecia absurdo, do porquê das falhas nas entregas dos matutinos. E às vezes, para acentuar o absurdo, quando se levantava com o sentimento de que não encontraria os matutinos no quintal, para sua surpresa apenas um havia sido entregue. Com o tempo, apenas maquinalmente ia ao quintal ver se o jornal havia sido atirado pelo entregador, se um jornal não havia sido destruído pela cadela. Com o tempo, igualmente, já estava se habituando a ler seus colunistas pelo computador, e assim se ajustava a uma nova situação. Com o tempo, inevitável, tomou a decisão de cancelar as assinaturas. E com os cancelamentos – tediosos num grau mais elevado ainda que quando reclamava falha na entrega –, ter de dar justificativas tão absurdas quanto a das falhas nas entregas. No computador, então, passou a ler ***
*** reforçava o que ele pensava. Era como se ele próprio escrevesse o que lia; ou que escreveria a mesma ideia de maneira diferente. Mas *** o fazia se sentir um idiota. A correspondência de mão única que estabeleceu com *** assim o revela:
“Interessante o texto de hoje do *** sobre educação. ‘A educação para a utopia da vida científica desumaniza’. Nesse texto de hoje, ao contrário do de semanas atrás, não há espaço para se pensar num leitor idiotizado. O idiota com o qual *** procuraria cumplicidade. Sim, uma pessoa sensata há de desconfiar de teorias pedagógicas e de pedagogos, há de torcer o nariz para chatos que sempre se perguntam sobre nutrientes apropriados (algo hermético em nossos dias é decodificar informações numa bula alimentícia… que significa mesmo calorias? Fibras? Carboidratos?). Mas, é para os sensatos que o texto se destina? Os insensatos, me parece, continuarão sua leitura religiosa de bulas que não entendem, malgrado o ***…
abs
Huble
PS. li outro dia, na UOL, que o Huble fotografou imagens de um buraco negro no meio da Via Láctea…; esse é o mundo em que vivemos, em que as crianças são educadas…; o meio da galáxia em que estamos será visto daqui a milhares de anos… quando a luz dela chegar a nós…; hoje o que vemos é tão somente a luz do que existiu milhares de anos no passado…”
*** recebe milhares de correspondências. Nenhuma razão, portanto, para que *** fosse dar qualquer atenção ao que ele escreveu. Ele sabia disso. Com isso, ficava a imaginar o que *** pensaria ao se deparar com uma correspondência para a qual não tinha qualquer interesse em responder e com inegável sentido de provocação. Para ele, no entanto, era um jogo curioso, tão absurdo quanto o que se envolvera K. Por absurdo, na semana seguinte ele continuou.
“Novamente leio a coluna de ***. Novamente sou obrigado a concordar com tudo que escreve sobre os vícios no ensino de história. Sou obrigado a concordar que professores são demasiado sectários. O que eu e *** faríamos para não sermos? O que fazer para impedir o sectarismo? Certa lassidão na arte de pensar? Acho sempre idiossincrático falar para quem não me ouve; mas estranho artifício retórico convencer quem já comigo partilha pensamento…; cá, fico a conjecturar: vaidade? É, há tempo para falar aos moucos e se exibir para os doutos…
abs
Huble
PS. não esperei, óbvio, resposta da correspondência anterior…; sei bem de minha insignificância nas trincheiras midiáticas”
Sabia que não teria resposta. E nem queria tê-la. Ou, se por obra do acaso a tivesse, apenas realçaria sua vaidade. ***, como Paulo Francis, é um conhecido polemista. Escreve sabendo que vai encontrar toda sorte de contrariedade com suas posições. Faz parte do jogo midiático que movimenta a imprensa com afirmações heterodoxas. Buscou e alcançou esse espaço. Mas, ele reflete: “*** é polemista ou polêmico? Polêmico é aquele que aborda temas com uma posição que gera contrariedade, que impulsiona respostas agressivas, que não busca o consenso ou que age para despertar paixões. Frente a alguém polêmico, o lugar comum: não concordo. Polemista é aquele que ao se expor de modo polêmico sabe que encontrará réplica e diante da réplica ele faz a tréplica… O polemista tem alguma coisa do guerreiro, está sempre pronto para a batalha. A polêmica em si não é tão interessante no jogo, mas sim bater de frente com quem diga: não concordo. *** não é polemista, pois jamais bate de frente com quem diz: não concordo. *** não sabe polemizar. Em situações nas quais foi instado a polemizar revelou como é um frágil polemista, ou como polemizar está fora de seu alcance. Ele se mira em Paulo Francis, mas …”, mas, é um polêmico que tem medo de polemizar. Por conseguinte, reflete ele: “concordar ou discordar de *** não é senão jogo de superfície”. E nesse jogo de superfície ele continua a correspondência:
“***, de quem se é possível concordar com tudo o que escreve e, ao mesmo tempo, ficar com a sensação de que ele só escreve para idiota. Toda vez que leio *** me sinto um idiota ao não perceber sua sagacidade. Fosse ***, contudo, tão inteligente e sagaz, não teria por alvo idiotas.
Salve,***; no mundo em que vivemos, o insulto e o afã para se comunicar com idiotas é só um sinal. Ainda bem que concordo sempre o que escreves.
abs
Huble”
Não esperava resposta. Escrevia como se fosse um hábito, um rito de que não conseguia se desgrudar (em certo sentido como com a leitura dos matutinos, mas só em certo sentido, pois a escrita não é impulsionada pelo rigor da disciplina e sim por um momento de inspiração, um momento em que a pulsão para escrever é tal que se não se realizar no momento da pulsão o que seria escrito se perde para sempre). Sabia perfeitamente que, como quando conversava com as atendentes para saber das falhas na entrega do jornal, apenas estabelecia uma correspondência com mocos. Na correspondência de mão única com ***, o que sabia é que a ele apenas cabia repetir o rito: sentar e escrever. Um rito, sim, nesse sentido, mais parecido com a pulsão para pegar o telefone, pois isso dependia de seu estado de humor para se expor ao absurdo kafkiano, e perguntar a atendente por que mais uma vez o entregador não veio e não obter resposta.
Sim, não é o caso de esquecer, os e-mails enviados por ele a *** tinham sempre a mesma resposta: “– Esta é uma mensagem gerada automaticamente pela caixa postal de ***@&&&.com.br. Não há necessidade de respondê-la. Obrigado por seu e-mail, caro leitor. Voltaremos a falar em breve, obrigado, ***”.
Ilustração: Folha do Estado – Franklin Valverde