Nove e dez da noite, eu no petshop para comprar fraldas para as minhas cachorras (aqueles tapetes para cães fazerem xixi).
Peguei um pacote de tapetes, circulei um pouco pela loja, fui à fila do caixa. Tranquilo, meio avoado, estava pensando em “só Deus sabe” (na morte do genial Quino semanas atrás, talvez?) quando o moço da frente me disse algo que eu não entendi. Sabe, só depois de ter de usar essas máscaras contra a covid-19 é que eu me dei conta do quanto há de leitura labial na minha comunicação. Não sei vocês, mas eu me sinto bem mais surdo agora do que em fevereiro.
Eu disse “Ãh?” ao rapaz, e ele repetiu o que tinha dito. Novamente eu não entendi. Mas, como das duas vezes em que ele falou olhava para baixo, eu pensei: “pisei um cocô de cachorro?”; “minha bermuda está rasgada?”; “deixei cair alguma coisa e ele está me avisando?”.
Bem, não era nada disso. Da terceira vez, compreendi o pedido em tom de ordem: “Você pode ir mais pra lá?” Foi essa a pergunta dele, solicitando que eu me afastasse. Ele olhava para baixo enquanto falava porque estava me apontando as marcas na fila, aquelas que indicam que as pessoas fiquem a um metro de distância umas das outras.
Mais que depressa, dei um passo para trás, constrangido pela minha distração. Em nenhum momento me ocorreu discutir com o rapaz ou querer ter razão (mesmo tendo achado seu tom um pouco ríspido); afinal de contas, fosse como fosse, ele estava certo. Essa é uma das medidas sanitárias necessárias neste momento e eu havia infringido (sem querer, juro!) uma regra.
Voltei para casa triste. Pouco saio, vou aos lugares que preciso em horários de menor movimento, sempre estou com a droga da máscara. Voltei para casa cabisbaixo porque senti o que já desconfiava que aconteceria: eu achando que me olhavam como pessoa enquanto me viam como um mero transmissor de vírus. Independentemente do que a ciência diz, a pandemia trará um custo psicossocial muito maior do que estamos supondo.
Nossas interações em sociedade, que nunca foram das melhores e nem eram livres de inúmeros problemas antes, vão piorar. Vamos ficar cada vez mais distantes uns dos outros fisicamente, e o vírus nos deu a todos a desculpa perfeita para ficarmos ainda mais imersos em nossa própria arrogância, carentes de afeição e fingindo que somos o máximo.
Sei que o vírus está aí e que a pandemia é um fato sério. Mas, sei lá… O meu olhar de profissional de Humanas me vaticina que as doenças sociais podem ser ainda piores que a enfermidade física (com outros efeitos muito mais graves, para além dessa mera trivialidade que eu narrei aqui). Vamos migrar cada vez mais para a virtualidade das telas, enquanto a vida real, a vida de fato, presencial e tátil, a vida que vibra e que pulsa, que tem cheiro e que faz disparar hormônios, vai ficar, paradoxalmente, mais longe de nós.
E o nosso país, então? É um contrassenso sem fim, né? Escolas e teatros fechados, mas aviões funcionando, trens, metrôs e ônibus lotados. Tudo que educa e faz pensar fechou. Tudo o que transporta as pessoas para servirem à lógica do capital continua funcionando. Em novembro, fui duas vezes votar numa escola em que não havia sequer aferição de temperatura. Estudar não pode, mas aglomerar para votar pode? Faz sentido? E assim vamos nós, rumo à uma pandemia eterna…
E quem quiser aproveitar o pouco de paquera que nos resta, vá aos restaurantes nos próximos dias, antes que um segundo tranca-rua nos enclausure de novo. Os restaurantes são os novos points do flerte presencial, pois só lá as pessoas podem estar sem máscara – pelo menos enquanto comem.
Não gosto do momento que estamos vivendo, não gostaria de voltar ao passado se pudesse (porque foram vários dos nossos comportamentos estúpidos de antes que nos levaram a esta merda que estamos vivendo agora), e, principalmente, não faço a menor ideia de que armadilhas o futuro nos reserva. Morro de inveja das gentes que vomitam certezas nas redes sociais, da cor tendência do verão às mazelas da política. A vocês, meus parabéns. Seus simulacros são impressionantes. Espero que vocês sejam, nas suas vidas reais, pelo menos 5% do que pregam online.
Ilustração: Máscara – Franklin Valverde