oracao_-_franklin_valverde.jpgN… chegou pontualmente. Por vota das 7h50 da manhã. Preparou o café dele na Black & Decker: duas colheres pequenas de café e 350 ml d´água; pôs uma badeja de frios, algumas frutas, para a habitual degustação matinal.

 

Como em todas as manhãs, os dois travam falas comezinhas e inconclusas sobre acontecimentos, pessoas, objetos… Ele, maquinalmente, dá respostas evasivas, faz perguntas sem sentido, comentários desconexos…

 

“N…, de que morreu a moça, mesmo?”, perguntou naquela manhã.

 

“… ããã… o que Seu…?”

 

“A moça… aquela, que a mãe foi desenterrar…”

“O quê?…”

 

“Lembra, a história que você me contou… da mulher na Igreja que você vai…”

 

A pergunta, claro, foi feita já sabendo que N… de imediato não se recordaria. Ela faz muitas coisas ao mesmo tempo. Não se dá conta da quantidade de pó, o café sai fraco…; mas N… ficou meio perturbada com a conversa. E ele bem sabia o que queria. Era, só por mero exercício antes de suas leituras matinais, ver coerência entre as narrativas…

 

“Ah! A mulher da Igreja! Aquela que a filha morreu e depois ela foi desenterrar no cemitério.”

 

Quando ouve uma história contada por N…, normalmente ele acompanha parte da narrativa. Alguns detalhes lhe escapam, outros lhe chamam a atenção; muitas vezes, para demonstrar interesse, faz pergunta cuja resposta já sabe, questiona por questionar um ou outro detalhe. Isso, ele sabe, pode se revelar por demais cansativo…; força uma imagem mental e convenientemente finge ter entendido tudo.

 

“Sim, ela… a moça… ela tinha quê doença?”

 

Para ele, meses atrás, quando N… lhe contara a história, ficara com a impressão de ter ouvido que a moça sofria de alguma paralisia desde os quinze anos e aos dezoito morreu…

 

“Sei não, Seu…; eu não sei que doença ela tinha.”

 

“Mas a mãe tentou tirar o corpo do cemitério…; ela foi presa, né? Você não sabe nada dela? Ela não foi mais na Igreja?”

 

“Ela foi presa, sim…, mas ela sumiu… nunca mais foi na Igreja…”

 

Ambos iam nessa conversa necrófila, com perguntas sobre uma narrativa anterior. N… fala sempre sem perceber bem o que fala, responde automaticamente enquanto lava louças, arruma panelas, retira a mesa após meu desjejum. Ele se levantou, pegou o jornal, abriu-o…

 

“Ela ia na Igreja e foi lá que você ficou sabendo…”

 

“É, não conhecia bem ela… ela não era da Igreja…; a filha dela tava doente, muito doente, não levantava da cama. E o Padre pediu para ela ir pra casa e fazer uma oração, que depois de uma semana a filha dela ia andar. Ela fez a oração e a filha dela melhorou… começou a andar… então ela não foi mais na Igreja. Aí a filha piorou e morreu. A mulher ficou louca. Foi na macumba e o macumbeiro falou que o Padre não sabia de nada, que a filha dela tava viva, que era pra ela buscar a filha dela no cemitério que a filha dela não tava morta. Ele ia fazer um despacho e a moça ia ficar boa… Foi assim, aí a mulher pegou dois home e foi pro cemitério pra desenterrar a filha… foi quando a polícia chegou e prendeu ela.”

 

“E o Padre… o que ele falou?”

 

“Ele ficou assustado… Crem Deus Padre!… o diabo existe!”

 

“Mas… o Padre, ficou sabendo…”

 

“As outras mulheres falavam pra ele que ela tinha ido no cemitério pra pegar a filha… o Padre disse que ela não tinha fé, que não era pra ir na macumba era pra ir na Igreja, fazer oração…”

 

“Sei… e… você acredita que tudo aconteceu por que ela parou de ir à Igreja?”

 

“Claro, Seu…, a moça melhorou quando ela fez a oração que o Padre pediu, mas era pra continuar indo na Igreja e ela achou que não precisava… quando a menina morreu ela ficou louca… e aí depois que a menina morreu ela foi procurar o diabo… é castigo… é preciso rezar que o diabo não aparece…”

 

N… continuou a falar… ele não mais fez perguntas. Apenas lia o jornal e tentava entender os pontos desconexos da história contada. No jornal, outras narrativas tomavam sua atenção.“É preciso rezar para afastar o mal…”, pensou.

 

Ilustração: Oração – Franklin Valverde