Poderia começar por uma boa combinação de números. Mas não consegue ver boa combinação entre 23, 12 e 09. “Todas as relações possíveis entre esses números escapam”, pensa ele. 12 e 09 são múltiplos de 03; 23, contudo, não o é. Talvez uma ideia que possa extrair é que 23, como 03, é primo, e os primos são divisíveis apenas pela unidade. Mas isso não diz muita coisa: todo número é dividido pela unidade… e…, bem, 12, óbvio, não é primo… O que ficou, contudo, do infausto encontro de 23 de dezembro de 2009 é que o dia 23 não é bom para encontros. Nesse dia, depois de quase um ano, reveria velho amigo (ele se mudara para Cuiabá, depois de passar em concurso público…), com quem há 17 anos partilhava amizade (“17, novamente me deparo com um primo…”). Ambos se conheceram na moradia estudantil da USP (bons tempos de Crusp, do bandejão, das conversas sobre política, do movimento estudantil…).
Caminhou ele, com sua companheira, 30 km no enlouquecedor trânsito paulistano, numa quarta-feira antevéspera de natal para revê-lo. Teve, inclusive, de mudar a trajetória que geralmente fazia para chegar à Zona Leste (trabalhou antes na São Judas…), pois os carros nas ruas ocupavam todas as vias e praticamente não se moviam. O encontro estava marcado para o meio-dia (na casa de antiga namorada, que ele não sabia mais que vínculo tinham…) e a chegada se deu quase uma da tarde. A recepção não passou de um:
– Agora o tempo já passou e o almoço combinado está cancelado – Disse o amigo, com rosto fechado, expressão de que não tolerava, sob qualquer justificativa, atraso. Não houve qualquer reação tipo “você tá brincando, cara; que brincadeira mais idiota!”. Saiu do carro, esperou a antiga namorada do amigo, que saia da casa.
– O tempo ficou muito apertado… – vociferou ela meio constrangida e sem dar muitas explicações. Então, depois de cumprimentá-la de modo contido, ele voltou ao carro sem se dirigir ao amigo. Este quis dar alguma explicação que ele sequer escutou; o amigo conteve o ar fechado de início e balbuciou meio sem graça algo como “Chegar atrasado é coisa de brasileiro…; mas… vocês…” Sua companheira, sentada no banco de passageiros do carro, disse:
– Pô, o que tá acontecendo? O trânsito tava um horror! A gente veio aqui pra te ver. Eu gosto de você…; a gente gosta de você; vocês são amigos…
– Mas eu não gosto de você! – disse o amigo de modo seco e surpreendente.
– O que eu fiz pra você? Nossa! Que desagradável… – Ela estalou os olhos, incrédula.
– Você atrasou… – Lembra ele vagamente de o amigo ter completado.
Ele não emitiu uma palavra. Ligou o carro, deu partida, e deixou o ex-amigo parado, falando sozinho. Teve tempo ainda de ver o ex-amigo, e a outrora namorada dele, pelo retrovisor. No carro, no trânsito enlouquecedor no caminho de volta para a Zona Oeste (sim, havia cruzado a cidade) permaneceu mudo; sua companheira fazia pergunta que ele não respondia, ou soltava cortantes monossílabos, até que ela também se aquietou. No caminho de volta, conjecturou: “No jogo das coincidências tudo pode acontecer. Encontros e desencontros não estão no plano de uma ciência exata. Isso tira a graça, o mistério das coisas. Mas guardo um sentido estranho em relação a datas, números, fatos que revelam coincidências. Um dia não é mais que um dia. O movimento da mão não é mais que um movimento. Mas num simples movimento pode-se extrair muitas coisas, pode-se extrair muitos pensamentos e perigosas verdades ocultas (desconfiava, de fato, que o agora ex amigo sempre quisera uma situação para falar o que falou para sua companheira). Um mistério estranho como a convivência, a crença de que nada, absolutamente nada justifica a singularidade do momento. Correr contra? Não! Como diriam os supersticiosos, estava escrito. Basta apenas o cuidado e perceber as relações apenas aparentemente ocultas. Poderia ser outro dia? Os fatos, os acontecimentos ocorrem num dia; é para ele que se pode fazer perguntas; crer que, fora do dia, há um número que registra o dia no calendário, como a hora no relógio, e que assim nesse número não é possível pensar que nada acontece. E se algo acontece num dia é porque, junto com as coincidências, o dia não é obra do acaso, é simplesmente um dia, com um número em sua cola e na cola o acontecimento. E assim, no número, a ocasião. Isso, para isso, não se deve imaginar uma fuga, apenas a contemplação da singularidade dos eventos da vida, assim as coisas acontecem enquanto movo o carro de volta nesse trânsito infernal”.
O carro trafegava lentamente e o jeito era pensar numa sucessão em que fantasmas de brincadeira se explicitam de forma estranha. 17 anos não são dois dias. É um intervalo de tempo longo. Suficiente para conhecer uma pessoa, saber seus hábitos, seus humores, sua maneira de lidar com as contrariedades da vida (a companheira e seu ar pequeno burguês era tudo que alguém que viveu anos no Crusp não gosta…; o verbo gostar não era nada gratuito). Não podia, então, dizer que seu agora ex-amigo o tenha deixado atônito com o cancelamento do almoço. Sim, sabia como seu agora ex-amigo era; assim como sabia que seu agora ex-amigo o conhecia e por isso sabia qual seria sua reação. Sem palavras, definitivamente; silêncio absoluto. “O acaso é apenas um nome, entre tantos. Um dia é diferente do outro, que passou, não é como o seguinte, que virá”. De tudo que se passou, bem, disso se pode tirar alguma psicologia do comportamento”. E assim continuava a refletir, aborrecido e ao mesmo tempo com o sentimento de que não carregava peso na consciência. Havia feito, e sabia bem disso, uma escolha, ao deixar o agora ex amigo para trás. Sabia que a situação criada não permitia nenhuma contemporização. Além do que o gesto agora ex amigo foi para ele simplesmente bestial.
Depois de quase duas horas no trânsito (entre ida e volta tinha ficado 5 horas preso no carro), chegou em casa e foi para o escritório. Olhou um papel em branco e tudo também de certa forma se explicava, se encaixava na engrenagem, numa engrenagem que se move de acordo com as regras da mecânica de Newton. Com o papel em branco e os pensamentos que havia ruminado pôs-se a escrever:
Mas isso pouco importa. No fundo tudo estava nos números. Na conjunção de datas. Passado o fato, é só extrair dos números o sentido aparentemente oculto. No dia 23, número primo, que termina em 03, mas não é múltiplo de 03, como o é o mês do dia, 12, e o ano do mês, 09. Eis o enigma dos números. Um acontecimento improvável e o sentido de muitas coisas ao longo de 17 anos de amizade. 17, sim, primo; dele se podem também extrair muitas histórias e, claro, um sentido…, um télos…; na vida…, sim,… algo de sabedoria…, olha e veja, quarta-feira…, dia de Mercúrio, não? O deus mensageiro…; fosse terça, seria Marte, o deus da guerra…, mas não houve guerra…, houve, sim, um equívoco na mensagem… Durante anos e temos adiante aspectos da linguagem, dos números. Num certo sentido, que não o da simbologia, aprende-se a decodificar sentidos ao levantarmos a mão. Isso espanta. O que se quer dizer e se diz sem que se perceba? O interesse na decodificação de códigos secretos, quando possivelmente nada é secreto. Algo que me envolve, penso, é a leitura da Doutrina Secreta, de Madame Blavatski. Tudo isso menos para escapar ao código da linguagem cotidiana e mais para acessar formas de saber que escapam ao ciclo ao redor. E Madame Blavatski, tão estranha e insondável… Tentativa…, sim,… por isso monto o esquema em que números…; e um fato que não passa de um acidente que confronta idiossincrasias…
Continuou a escrita, um tanto quanto descabida, repleta de lapsos e incongruências, pois a razoabilidade não deixa de ser um modo tosco de tentar burlar o absurdo. Com a companheira, jamais tocou no assunto. Ela também não lhe fez perguntas. Um não assunto. Não havia, para ele, motivo para falar quando uma situação é evidente em si mesma. A fala, a linguagem, apenas reforça o sentido de incompreensão. Melhor, sendo um desabafo, o outro que ouve é apenas um intermediário e nesse sentido nada diferente de uma folha de papel. Preferia, assim, o papel, pois este podia ser lido em outro momento, num momento em que depois de tantas coisas o desencontro fica como um instante na vida que se reveste de bizarrice, em que quanto mais se procura sentido mais esse escapa; pois o sentido está, justamente, onde o oculto não é desvendado. Por isso, para ele, a numerologia era também uma arte do autoengano. Algo que o confortava para dar sentido ao que fugia ao bom senso, à expectativa que tinha dos acontecimentos vividos, como todos ao redor que creem controlar todas as situações e humores. Os números não conspiram, eles não revelam senão coincidências que são notadas depois dos acontecimentos. Certo dia, indo trabalhar, na via Anhanguera viu um motoboy que parou para fazer xixi. “Se eu estivesse muito apertado, eu também ia fazer a mesma coisa”. Continuou o trajeto, esqueceu o motoboy e quando chegou à marginal Tietê viu um motoboy que parou para fazer xixi… “Caramba! Embora não seja anormal encontrar alguém mijando no meio da rua, encontrar com menos de 10 minutos de diferença dois motoboys à luz do dia…; que dia é hoje? Mas acho que com o burburinho do dia vou esquecer…”.
Ilustração: Cancelado – Franklin Valverde