na_treva_da_provncia_-_divulgacao.jpgHá uma anecdota bastante desagradável, que não conviria para iniciar a resenha de uma antologia poética: há tantos leitores de poesia quanto de poetas. Os poetas, assim, estariam encerrados num círculo hermético, com uma linguagem codificada e somente entre eles, como em toda seita hermética, se compreenderia os sinais de sua escrita hieroglífica.

 

Acabo de ler Na treva da província – poemas escolhidos de Emiliano Perneta (Kotter Editorial, 176 págs.), seleção, organização e notas de Donny Correia. Emiliano Perneta (1866-1921) foi um poeta corithibanno cuja obra se situa entre o parnasianismo e o modernismo; é mais frequentemente reconhecido como simbolista, quando acompanhamos a linha cronológica dos movimentos literários no Brasil, na passagem do XIX para o XX. Essa referência é apenas uma indicação para localização no espaço e no tempo.

 

Mas, o que aqui importa antes de mais nada é indagar quem leu e quem hoje leria Emiliano Perneta. Supondo, por óbvio, que poetas não sejam exclusivamente lidos por poetas. Negando, pois, a anecdota. Ponho essa questão porque Perneta, como pude constatar em live de lançamento do livro (https://www.youtube.com/watch?v=NOKCB2T7S0Q), que juntou Donny, o organizador, Daniel Osiecki, editor, Marcelo Tapia, professor de literatura, e Marco Aurélio de Souza, poeta curitibano, reclama um lugar que não ocupou na história da literatura brasileira. E ponho essa questão igualmente porque, não fazendo parte de círculos de poesia, ignorava Perneta, até justamente ser apresentado a ele pelo livro que recebi de Donny Correia, que, transitando em diversos espaços da mídia, é também reconhecido pela identidade de poeta.

 

Li, então, o livro que Donny me passou e agora passo a rabiscar algumas linhas, com impressões sobre o que li e sobre a reclamação do lugar que Perneta teria em nossa literatura. Como desconheço os livros propriamente publicados por Perneta, me fio na antologia donnyana. Nela, a impressão mais forte do que foi coligido é que foi um poeta que se inseriu nos ambientes da época e escreveu de um modo no qual o leigo em poesia sente, por comparação, o vigor de seus escritos, o cuidado com a forma, a perspicácia na escolha temática e, principalmente, a sintonia com o clima de um momento que é conhecido em nossa história como belle époque.

 

Além de Perneta, a passagem do XIX para o XX viu surgir nomes que se dispuseram a exercitar a poesia, que se inseriram em contendas, e que revelam um sentido bem característico da cultura de um país que saia do império para a república. A antologia organizada por Donny é um brinde para quem, não sendo poeta, tem curiosidade por questões daquele momento em nossa história, momento em que a poesia, e os embates intelectuais dela derivados, revela um país que procurava entrar em sintonia com o que acontecia na Europa, notadamente na França. Nesse sentido, o trabalho de arqueologia de Donny é notável, assim como digna de louvor e ousadia a iniciativa editorial da Kotter.

 

Mas, quem leu e, hoje, quem leria Perneta? E por que Perneta reclama um lugar na história de nossa literatura que não teve e não tem?

 

A primeira pergunta – tenho em vista a falas de Donny, Tapia e Marco Aurélio na live referida – foi respondida da seguinte maneira. Perneta não passou em brancas nuvens em seu tempo. Colocou Corithiba na mapa cultural num momento em que o Rio de Janeiro dominava a cena. Mas ele tampouco foi lido e reconhecido em seu próprio tempo. Foi alvo da acusação de que se tratava de um “poeta de província”, como se antevê no título dado à antologia: Na treva da província. Não é o caso, nem estou aparelhado para tanto, tratar das razões pelas quais, em seu próprio tempo, ele se fez notar, mas não efetivamente se destacar, ou se inserir na plêiade de poetas canônicos. Há forças sublunares no mundo das artes, e da cultura, que jamais devem ser subestimadas. Modismos, jogos de poder e futilidades diversas cimentam e apagam nomes, que não se impõem por que teriam valor transcendental, além da escala sublunar.

 

Resta então indagar qual o lugar lhe seria merecido na história de nossa literatura e, por conseguinte, quem hoje o leria. Ora, nesse ponto, invoco Hegel. A verdade de uma obra de arte expressa o “espírito de uma época”. Com isso, para Hegel, não há valor absoluto numa obra.  Este é condicionado pelo quanto ela revela o sentido de um momento no movimento da história. Não suficientemente reconhecido na época em que viveu, ou não sendo lido como um poeta expressivo de seu tempo, conforme Hegel, como em tantos outros paradoxos da história da arte, Perneta pode ser lido e ter sua glória reconhecida pelos pósteros. Para isso, entretanto, sua poesia deve tocar os tempos atuais, dizer sobre o “espírito de nossa época” tendo por espelho a nostalgia do que passou. Portanto, que aquilo que escreveu, ignorado por seus contemporâneos, hoje revele algo de nosso tempo, dito no passado e que por muito tempo esteve adormecido.

 

Quanto ao lugar que efetivamente lhe cabe na história de nossa literatura, não nos esqueçamos dos modismos, jogos de poder e futilidades diversas. Forças que jamais se deve subestimar. Nesse jogo de forças, a organização da antologia feita pelo Donny é um lance, a publicação realizada pela Kotter outro. Eles, não obstante, são insuficientes. Só o tempo – e potenciais leitores que escapem ao hermético círculo da poesia – dirá se as cartadas feitas colocarão Emiliano Perneta num lugar em que não esteve até agora.

 

Humberto Pereira da Silva é professor da FAAP, critico de cinema e membro da Abraccine.