sonovigilia_franklin_valverde.jpgLê, recostado como d´habito na poltrona, O nascimento da tragédia…; as letras ficam pequenas, começam a dançar na frente dele; num intervalo de tempo que não dá conta se retém numa frase que lhe parece não ter sentido, como deixa de ter sentido o parágrafo que havia iniciado, o ponto de partida do argumento…; e lhe vem a sensação de em sonho continuar a leitura; não vê mais o livro, mas continuou a lê-lo… até que não mais o livro e sim a imagem de uma escada… a imagem, num sonho fugaz; de fato não tem mais a percepção do que se passa ao redor, de que o livro está sobre seu colo… e, sim, lhe vem à mente a imagem da escada num local frequentado no passado, o Instituto de Física Teórica.

 

No casarão erguido na época dos barões do café, na Pamplona, esquina com a Paulista, a escada e o acesso à biblioteca, que ficava no subsolo… antes, provavelmente, uma adega… O teto da biblioteca, baixo, e a sensação de compressão… as estantes enfileiradas, bem próximas umas das outras… o bibliotecário, tão logo chegava-se à biblioteca, na extremidade oposta à esquerda, era avistado… até ele, um corredor onde ficavam expostas revistas sobre mesas baixas… e ele, sentado numa escrivaninha antiga de madeira. Próximo a ele, à direta, uma porta feita por encomenda, visto não ter o subsolo altura suficiente…  Da porta, acesso para os fundos, onde havia um jardim, uma edícula, num terreno em declive, claro, pois o subsolo… ; sim, sim, frequentemente rodeava o casarão e entrava na biblioteca pelos fundos. Dava de cara com o bibliotecário, cabelos rentes máquina dois nas laterais, grisalhos, tez branca, formal como um burocrata alemão, aparentemente cinquenta anos…; cumprimentava-o e ia para as estantes e lá ficava…; sim, não havia mesas para estudos demorados …três ou quadro cadeiras e uma mesinha, bem pequena, apenas para depositar o livro, fazer breves anotações à lateral das estantes, assim podia ser avistado pelo bibliotecário, mas não por quem descia da escada… Para estudos demorados, havia, na edícula, uma mesa grande, onde livros podiam ser espalhados…; na edícula, também, uma sala enorme fora adaptada para auditório, onde cabiam aproximadamente vinte pessoas… a lousa no auditório tinha uma peculiaridade que não voltou a ver em nenhum outro lugar. Era dividida em quatro partes. Duas na altura normal para alcance de qualquer um que nela escrevesse. As outras duas ficavam imediatamente acima delas. De modo que, tão logo uma das partes na altura normal fosse preenchida, puxava-se a parte de cima para baixo – havia um mecanismo como uma roldana… –, e a parte de cima, embaixo, podia ser igualmente preenchida. E assim passava-se à lousa do lado e ao final as quatro partes preenchidas sem que houvesse necessidade de serem apagadas…

 

O Instituto, num sonho fugaz, e a atmosfera pesada de um tempo passado, agora para ele distante. Queria ser físico teórico, estudar a teoria da relatividade generalizada. E assim, no Instituto, foi aceito para fazer iniciação científica, orientado pelo insigne professor Herman Bund. Não tinha a mais remota ideia das dificuldades e da frustração. Era mais um, entre infindos a cruzar o alpendre que dá acesso à sala de entrada do casarão e que fica sabendo que há no subsolo uma biblioteca onde pode fazer pesquisa, consultar revistas especializadas internacionais e que a ela se tem acesso por uma escada… e a imagem da escada, em sonho, enquanto, fadigado pela leitura de A origem da tragédia…, e quase desperto, lembra que se preparou para o seminário, que atravessou noites estudando equações diferenciais e que mal começou falar e ouviu do professor Herman Bund: está errado! Mal ouviu e a parte de cima da lousa, a da esquerda dele, desceu com toda a violência que ele podia imprimir à engrenagem. Teve tempo de ver o rosto incrédulo do professor Herman Bund, e seu auxiliar, o professor Castilho. Além deles, no auditório, havia mais três estudantes que, como ele, passavam pelo rito iniciático e presenciaram a cena dionisíaca. “Quanto é possível suportar de verdade?” Mentir, assim, é uma benção dos deuses. Pode-se, dessa forma, viver feliz, confortado pela ilusão da realidade… 

 

Nietzsche e sua tragédia, cuja leitura data também daquela época, não deixa de ser, num certo sentido, uma forma de retorno. Tantos anos se passaram, tudo mudou tanto. Mas Nietzsche, sim, nele, um ponto de inflexão e um eterno retorno. E depois de Nietzsche veio August Strindberg, Dança da morte e o Inferno… Há tanto tempo as palavras, as equações, lhe aparecem dançando, sem sentido, entre sonho e vigília, há tanto tempo a eterna sensação de retorno àquela biblioteca, passando pela escada, cruzando o bibliotecário com formalidade prussiana, chegando à edícula, ao auditório, àquele momento em que a física era tudo…

 

Ilustração: Sono e vigília – Franklin Valverde