– Rua Javari… éééé… aqui…. a gente tá do lado d´onde Pelé marcou dizem seu mais belo gol; mais gente falou que viu o gol do que quem tava aqui, falou elle. Elle não desconfiava do poder magico de Pelé. Mas via em Pelé um personagem em que na mesma medida alimentava paixões. Em que pequenos momentos eram mitifficados. Em que na mesma medida alimentava papos interessantes e outros sem pé-nem-cabeça.
Os zagueiros do Juventus não eram bons assim para glorificar a obra-prima de Pelé?, falou Humberto, com accento provocattivo. Elle não gostava de futebol. Mas como colleccionadores de borbolleta, collecionava episodios do sporte-bretão no paiz-do-futebol.
– Tão tentando recriar o gol com o computador, parece game, falou Viveirus, depois de sorver um gole de cerveja.
– Ora, qual a importância? Alguém duvida? Alguém acha que foi fake? É isso?, falou Valverdi, santista isollado entre elles. E riu desdenhando a suposição de que o gol digital não correspondia ao gol real. Estavam os quatro na Esfiha Juventus, tarde de sexta, 15h, estação primavera, chuva rapida antes de chegarem, Rua Visconde de Laguna, 152. Obsessivo com horario, chegou adiantado Humberto. Cinco minutos na calçada esperou e avistou Valverdi cruzando a pé o semaforo da Javari.
– Opa! Veio de metrô?, falou Humberto.
– É mais fácil que de carro, falou Valverdi. Entraram os dous, então, e se accomodaram, esperando os outros dous. Primeira vez que se viam após dous annos confinados. A pandemia prendeu-os; e nesse lapso de tempo tenebroso falavam-se, sobre futebol e também sobre política, pelo zap. Com o atestado de liberdade, o encontro nos arredores do moleque travesso. Elle evocou a rua cellebrada pelos saudosistas por futebol para lembrar do cellebre gol de Pelé, enquanto tomavam cerveja e esperavam o pedido d´esfihas.
– A imagem vale mais que mil palavras, falou elle. Quem disse isso?, continuou elle. O encontro fora arranjado por Humberto, que na Mooca dommiciliava, algumas quadras da Javari. Gostava Humberto de ouvir as anecdotas que elle contava sobre futebol. Juventino sem afetos, embora Humberto não tivesse a disposição dele para quem como tivesse um tique altista decorava cousas do futebol, era realmente appaixonado pelo cavaco sobre futebol, com cerveja num bar qualquer e os amigos de longa data.
– Dizem que foi Confúcio, mas… eu prefiro o Millôr: “diga isso sem palavras”, falou Viveirus, commo a escarnear o mestre chinês, se este realmente disse o que se lhe atribuem.
– Espera aí, vocês veem…; hoje é só abrir o youtube e ver os gols do Pelé; eu era criança e vi, meu pai me levava pra ver o Santos no Pacaembu, e vi o Pelé jogar; o gol aqui na Javari não ter imagem? Não tinha jeito de filmar na época; mas vocês duvidam que foi do jeito que contam?, falou Valverdi. Fascinado pelo Santos e por Pelé, Valverdi ficava um tanto desassossegado quando alguem punha em duvida seus feitos. Mantinha sempre a compostura. Mas com humor aguçado e enorme senso poetico, dottado era Valverdi de tiradas espirituosas.
– La mano de Dios do Maradona foi filmada; Pelé só precisava dos pés e da cabeça, continuou Valverdi.
– Oh, Valverdi, você tá esquecendo o cotovelo; mas o Dagoberto Fontes não esqueceu; ou você acha que esqueceu?, falou ele.
– E naquele jogo contra o Uruguai tem a imagem do gol que não foi gol; o drible da vaca no Mazurkiewicz foi o lance mais genial do Pelé naquela Copa; se fosse gol, acho que ninguém ia lembrar desse contra o Juventus; e a Copa não é o Paulista, os zagueiros do Uruguai não eram fracos como os do Juventus; tem mais, no jogo do gol de mão o Maradona fez o mais belo gol de todas as Copas, você não acha, Valverdi?, continuou elle.
– Pelé fez um parecido; e também não tem imagem; no Maracanã; marcou contra o Fluminense; pegou a bola no meio do campo e driblou todo o time do Fluminense; o estádio aplaudiu de pé e o Joelmir Beting, aquele que virou jornalista econômico da Globo anos depois, pai do Mauro Beting, que tá no SBT, falou, e depois foi feita mesmo, que o gol merecia uma placa, o tal do gol de placa: aqui no dia tal, contra…, Pelé…, falou Viveirus.
– Acho que os gols sem imagens hoje não teriam atenção se a gente visse as imagens, falou Humberto.
– Millôr tinha razão, falou Viveirus.
– Millôr era gozador, falou Valverdi.
– Mas o gol do Maradona contra a Inglaterra…, com a bola desde o meio de campo; é isso mesmo, Viveirus, o Pelé cansou de fazer igual; claro, a Copa pesa pra cacete, né….; o mais belo de todas as Copas? Eu fico com o do Pelé na final da Copa de 58; com 17 anos, matou no peito e… de sem pulo…; só Pelé pra fazer aquele gol e tantos como o do Maradona contra a Inglaterra, continuou Valverdi.
– Para cada gol, um lance de gênio, falou Humberto.
– O mito é o nada que é tudo, falou elle.
– Só uma pessoa como o Pessoa pra criar o mito Pessoa, falou Valverdi, sempre espirituoso.
– Acho que o mito maior do mito Pelé foi o mito do milésimo gol, falou elle.
– Por quê? Você é daqueles que dizem que só fez os mil gols porque contou os que fez contra times arranjados, que o Pelé contou os gols na seleção do exército?, falou Valverdi.
– O Santos na época jogava contra o Real, o Benfica do Euzébio, o Milan; fazia excursão o tempo todo na Europa; jogou também na África, na América Central, pra ganhar dinheiro; mas dizer que não vale contar os gols que fez no fraco Paulistinha, pois não tinha ainda o Brasileiro, e em times de segunda é demais, continuou Valverdi.
– A anedota dos mil gols é contada pela metade, falou elle.
– Como assim?, falou Humberto.
– Tá, mas conta aí o que você acha que ninguém sabe, que só você sabe, falou Viveirus.
– Não sou o maior fã do Pelé, prefiro o Divino, mas dados são dados; e todo mundo sabe, só quem tá com sacanagem pra dizer que o Pelé não marcou mil gols; tô com o Valverdi, você acha que gol contra time pequeno não conta?, continuou Viveirus.
– Quando querem achar pelo em Pelé ficam com essa dos mil gols; que futebol era mais fácil; bobagem; gols contra combinados; as defesas eram fracas, não tinha a marcação de hoje; hoje se Pelé jogasse, hoje não tem os craques que tinha, o Pelé ia marcar três mil gols, falou Valverdi. Riu um tanto exaltado e em seguida sorveu um gole de cerveja.
– Comparar épocas não dá, falou elle.
– O que você quer dizer com anedota dos mil gols, falou Humberto.
– Também concordo com o Viveirus; dados são dados; concordo também que comparar épocas é complicado; mas um dado que acho interessante, na época do Pelé além dele havia outros grandes jogadores, Garricha, Didi, depois o Rivelino, Zizinho em final de carreira, e ninguém chegou perto do Pelé; hoje Messi e CR7 disputam gol a gol quem é o maior artilheiro; a diferença do Pelé para os outros na época do Pelé era muito grande e não tinha só perna de pau; a anedota dos mil gols que você tá contando não se sustenta, continuou Humberto.
– Sim, Humberto, o mito Pessoa; eu adoro Fernando Pessoa, adoro literatura portuguesa; mas, o que tem a ver misturar Pessoa e Pelé?, falou Viveirus.
– A cerveja e as conversas de boteco depois da cerveja, continuou Viveirus, soltando uma gargalhada. Então, falou elle:
– Os feitos do Pelé, que tinha números extraordinários, eram bem conhecidos em 69; certo; mas ninguém na CBD estava preocupado em saber quantos gols Pelé tinha feito, pois não tinha estatística; e naquela época aqui no Brasil acho que um ou outro jornalista, quem sabe, sabia da existência do austríaco Joseph Bican, que jogou nas décadas de 30, 40, sem televisão e Copa sem importância além da política, a Itália fascista foi bi.., e que, o tal Bican, nas contas deles tinha mais de mil e oitocentos gols; estatísticas, esquemas táticos, tic-tac, Guardiola, são coisas de agora, continuou elle.
– Certo, tá…, mas dados são dados, você concorda? É só olhar em qualquer Wikipédia e ver ano a ano os gols do Pelé; não tô entendo onde você acha que a história tá contada pela metade; se tô entendendo, você considera os gols oficiais da FIFA, e não nos amistosos; mas que novidade tem aqui? A não ser, tô com Valverdi, achar pelo no Pelé, falou Viveirus, que, dirigindo o copo à boca, deu nova gargalhada.
– Eu também tô com o Valverdi; e esse papo de gols oficiais da FIFA é de hoje, porque o Messi e o CR7 na contagem oficial da FIFA passaram o Pelé, falou Humberto.
– Sei…, então, pelo que vejo, vocês não sabem como começou a história dos mil gols, falou elle.
– Eu era pequeno, mas escutei no rádio o jogo, falou Valverdi.
– É, mas teve uma polêmica. No início de 69 o Thomaz Mazzoni, era editor chefe da Gazeta Esportiva, tinha bastante influência, era bem lido, contou os gols do Pelé e viu que faltava pouco para chegar ao milésimo gol; só que os registros do Mazzoni não batiam com os do De Vaney, um jornalista do jornal A cidade de Santos, santista roxo que tinha todas as estatísticas do Santos, com os gols do Pelé e tudo mais; sabia tudo do Santos; nas contas do De Vaney o Pelé tinha menos gols que nas contas do Mazzoni; as contam não batiam, falou ele.
– Bem, bom motivo pra notícia ter destaque na imprensa, continuou elle.
– Certo, o que você conclui então?, falou Valverdi.
– A imprensa criou o assunto, falou elle.
– Assim, uma matéria que o editor achou bacana porque viu que o Pelé tinha mais de novecentos gols e se aproximava dos mil; mas a conta do Mazzoni foi questionada pelo De Vaney, continuou elle. Humberto ficou atento, ouvido a prosa delle; Valverdi fez trejeito d`enfado; Viveirus, meneios de que aguardava elle concluir. Prosseguiu elle: vejam só, sem a matéria da Gazeta, e os dados, não é Viveirus?, que não batiam, ninguém na CBD, do execrável Havelange, ficou contando os gols do Pelé desde que estreou no Santos.
– Mas, e aí?, falou Humberto?
– E aí que começou a contagem regressiva para o milésimo gol com grande cobertura da imprensa, depois que o Havelange bateu o martelo a favor das contas do De Vaney; o dia do milésimo gol foi aguardado, falou elle.
– Você tá querendo dizer…, falou Viveirus, interrompendo-o.
– Dizer que de fato pouco importa a conta de gols do Pelé; para a imprensa geral, e não entra aí a Gazeta, a cobertura ficou valendo com a conta do De Vaney e não a do Mazzoni; o gol contra o Vasco é simbólico; não bate com a conta do Mazzoni; a Gazeta cobriu o milésimo gol antes, e mencionou o gol contra o Vasco como mais um gol de Pelé, falou elle.
– Tá, isso eu não sabia, nunca entrei nesses detalhes, nem tinha ideia; mas, você entra na onda das conversas dos jogos arranjados? Essa de que só valem os gols oficiais da FIFA?, falou Valverdi.
– FIFA! FIFA! E o título mundial do Palmeiras, falou Humberto, com mordacidade, olhando para o Viveirus.
– O título foi reconhecido? Então não se discute, falou Viveirus, incommodado com a mudança reppentina de Pelé para o Palmeiras. Após sorverem tres cervejas, as esfihas chegaram.
– Mais uma cerveja, por favor, falou Viveirus ao garçom.
– A conta da FIFA pros gols do Pelé tem importância só por causa do Messi e do CR7; os dois geram notícia; se não, seria como a conta do Mazzoni, ninguém ia lembrar; vale o mito: o milésimo gol foi contra o Vasco no Maracanã lotado; tudo parou depois do gol; o mito é o nada que é tudo; você que lembrou que o Pessoa criou o mito Pessoa, Valverdi; agora, Viveirus, você não gosta, mas a conta do título do Palmeiras é às avessas; querer um título que não fez nenhuma diferença para as duas academias do Palmeiras, maior rival do Santos de Pelé, só por causa da gozação da galera?, falou elle. E, depois de breve silencio entre elles; a conversa e a cerveja exaltaram os annimos; prosseguiu elle:
– Esse lance de imagem é engraçado, a manchete de um jornal achado em arquivos de 1951 prova que o Palmeiras tem mundial; “PALMEIRAS CAMPEÃO DO MUNDO”, estampou a Gazeta Esportiva, em 22 de julho daquele ano; a Gazeta, do mesmo Mazzoni, que já era editor, a do milésimo gol que só foi noticiado pelo Mazzoni. Meio desconcertado e sem entender ao certo se elle estava sendo irônico, Viveirus cerrou um pedaço d´esfiha, espetou-o, pol-o na boca, torceu o pescoço num movimento de 30º para a direita, comprimiu os lábios com força, franziu a testa, encolheu os olhos, uhhuhuhu…
Ilustração: Poema visual “Brasil” de Franklin Valverde