o_revolucionrio_cordial_-_divulgacao.jpgAs gerações passam e importantes personagens em nosso cenário político e cultural acabam esmaecidos; ou, seguindo o ritmo da vida, novos nomes entram em cena e, fora poucos canonizados, muitos quando por ventura lembrados o são de forma distorcida – por conta de algum traço de caráter ou episódio lateral que estimula no mais das vezes caricaturas. Assim, destacados em suas épocas, hoje não são exatamente conhecidos por muitos das gerações mais recentes André Rebouças, abolicionista que deu nome à famosa avenida paulistana, ou mesmo José Guilherme Merquior, que morreu praticamente ontem e teve atuação intensa na década de 1980. Isso sem falar em Luís Gama, José do Patrocínio, Oliveira Viana, Austregésilo Athayde, Astrojildo Pereira… Este último, para as novas gerações, é personagem de O revolucionário cordial: Astrojildo Pereira e as origens de uma política cultural (Boitempo Editorial, 252 págs.), de Martin Cezar Feijó, que mergulha no cenário político e cultural brasileiro entre as décadas de 1910 e 1960.

 

O revolucionário cordial resultou de tese de doutorado defendida na ECA-USP em 1999 e teve sua primeira edição em livro publicada em 2001. Importante realçar aqui: tese defendida na linha de pesquisa com foco em “teorias socias e políticas culturais”. A razão do negrito veremos adiante. Adianto, primeiro, que não li a edição anterior e que nesta não há indicação de que haja mudança entre elas; assim como não há menção de que a tese tenha sofrido modificação ou ajuste para publicação em livro. A esse respeito, penso, um alerta inicial: um leitor que tenha pouco trânsito no assunto, que seja principalmente diletante, pode se cansar com alongadas e constantes notas de rodapé. Exigência plenamente justificável num trabalho acadêmico, mas que pode ser dosada numa versão para livro. Enfim, esse um cuidado editorial e que tem a ver com estratégia do mercado.

 

Ok, são escolhas editoriais e, justamente por isso, numa resenha dirigida a um leitor imaginário, não creio ser descabido fazer essa observação. Outra que também entendo ser oportuna, e então considero o negrito acima: chamo a atenção para o subtítulo do livro: “Astrojildo Pereira e as origens de uma política cultural”. O subtítulo é claro: o livro tem no horizonte a figura de Astrojildo e com ela “as origens de uma política cultural”. Sobre esse tema, o próprio Feijó havia publicado para a antiga Coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense, o didático O que é política cultural (1983).

 

Lembro ter lido o exemplar da Coleção Primeiros Passos há mais de trinta anos, quando então lia copiosamente todos os exemplares da dita coleção. Mas, passado o tempo, hoje não retenho na memória o conteúdo do livro e meu exemplar perdeu-se na vida com tantos outros da Primeiros Passos. Isso para dizer que gostaria, mas não tive como acessar o livro em que Feijó se concentra no tema que dá subtítulo a O revolucionário cordial. Esta lembrança é para enfatizar que a expressão “política cultural”, certo, percorre as páginas de O revolucionário cordial, mas o leitor pode se frustrar ao tentar entender como a figura de Astrojildo se situa nas “origens de uma política cultural”. A espinha dorsal do livro é o trajeto político e cultural do personagem retratado.

 

Assim sendo, O revolucionário cordial tem presente para mim a ideia de um perfil intelectual e segue a cronologia do envolvimento de Astrojildo na cena política e cultural brasileira. De sua militância anarquista nos anos de 1910, passando pela formação do PCB (Partido Comunista Brasileiro, seção brasileira da Internacional Comunista), sua controversa e conturbada expulsão do partido no começo da década de 1930 e sua volta ao Partidão com o fim do Estado Novo. Paralelo ao trajeto político, o livro trata da atuação de Astrojildo como crítico literário e, a esse respeito, da especial atenção que dá a Machado de Assis. Ocorre que, nesse amplo percurso que cobre meio século de nossa história, a expressão “política cultural” se dilui. Conjecturo, aqui o vínculo com a linha de pesquisa do Departamento de Comunicação da ECA. Feijó, assim especulo, fez um voo além do protocolo institucional. Mas, se essa especulação faz sentido, poderia não se inclui-la no subtítulo do livro.

 

Para mim, é inevitável que, com o subtítulo, o leitor o retenha como pano de fundo e tenha mais fortemente presente como Astrojildo se moveu em diatribes políticas e culturais. E estas envolvem figuras do mundo político strito sensu, com Luís Carlos Prestes, e, igualmente strito sensu, do mundo cultural, como Oswald de Andrade. Quer dizer, o livro segue uma trilha em que o leitor pode saborear como se movimentou a política e a cultura no Brasil na primeira metade do século passado. Mas, sem que se dê conta propriamente do que estaria nas “origens de uma política cultural”.

 

Justamente no capítulo específico em que trata de “política cultural”, o X, Feijó antecipa a conclusão do livro. Nele, Astrojildo se posiciona em relação à “tarefa da inteligência”. Isso em 1944, quando publica Interpretações, que para Feijó pode ser considerado seu melhor trabalho intelectual. Nesse ponto, entretanto, Astrojildo já estava na curva descendente de seu trajeto político. Sintomática, como devidamente exposta no livro, sua tentativa fracassada de se eleger vereador do Rio de Janeiro em 1945 pelo PCB.

 

Com o estreito espaço que teve no Partidão em sua volta a partir de 1945 – o que está bem evidenciado no livro –, é muito difícil imaginar que sua defesa de uma “política cultural” encontrasse eco. A supor que ela sairia do âmbito do partido, então… Daí entendo até perfeitamente – considerando, claro, a rigidez ideológica e a cozinha do Partidão –, os ataques que lhe foram desferidos por Octávio Brandão, que teve papel destacado nos anos iniciais de formação do PCB. Ocorre que, a se pensar Astrojildo sofrendo forte resistência no partido, se extrai que suas ideias sobre “política cultural” caem no vazio. Voltando então ao subtítulo, “as origens de uma política cultural”; tratando-se de Astrojildo, talvez não tenha como estas “origens” saírem do pano de fundo no rico percurso político e cultural que ele trilhou, uma vez que a discussão sobre “política cultural” não ganhou contornos em seu trajeto anterior, quando ele teve força para construir, num momento turbulento de nossa história, o PCB.

 

Ou seja, se com “as origens de uma política cultural” se quer referir ao momento em que Astrojildo voltou ao partido, creio que essas origens ficaram nas intenções. Agora, caso o livro frustre quem espera uma exposição pontual e sistemática do que o subtítulo indica – “as origens de uma política cultural” –, ele por outro lado não frustrará quem tiver em vista o empenho e rigor no cuidado com as fontes em uma pesquisa acadêmica. Feijó é minucioso e detalhista na descrição de diversos episódios da vida de Astrojildo. A esse respeito procedeu a um metódico e rigoroso trabalho de garimpo no acesso às fontes – imagino a paciência e a perseverança para obter informações que circulavam desencontradas e cobertas por névoas. Resultado: não há uma informação importante cuja fonte não tenha sido devidamente creditada. Pode-se arguir que é o mínimo num trabalho acadêmico. Isso, contudo, se se fizer vistas grossas, justamente, para o empenho e disciplina que um trabalho sério exige.

 

Quem tem noção mínima do que seja um trabalho de pesquisa sabe perfeitamente o quanto dados relevantes podem ser sorrateiramente requentados com fontes de segunda mão. Sob esse aspecto, o trabalho de Feijó sobeja integridade intelectual. Ganha com isso o leitor, que não fica refém de eventuais acomodações do autor para exibir o que é tão só suspeito, ou mesmo improvável. De modo que, um grande mérito do livro, para mim, está na segurança com que Feijó exibe e descreve episódios controversos da vida de Astrojildo e que envolvem figuras distintas como Mário de Andrade e Sergio Buarque de Holanda.

 

O revolucionário cordial, ainda que de modo lacunar – e isso é admitido por Feijó –, estimula o leitor a saber mais sobre o pedregoso caminho do PCB e de acalorados debates que opõem importantes nomes de nossa intelectualidade e militância política em meio século. Ao ler o livro com essa perspectiva, tenho em mente o quanto o debate no Brasil se transfigurou desde quando Astrojildo Pereira, Octávio Brandão entre tantos saíram de cena. Ler Feijó me faz sentir o quanto hoje a diluição de ideias, com gozações típicas de torcidas uniformizadas, torna o sentido do debate uma conversa rasteira.

 

A constatação que me vem da leitura de O revolucionário cordial me leva à importância de sua reedição. No contrapé dos traços pálidos que apenas reforçam caricaturas de personalidades outrora ativas em nossa cena política e cultural, Feijó nos oferece um quadro rico em detalhes sobre um personagem que não deve passar despercebido. Registro, aliás, a iniciativa da Boitempo, que neste ano de 2022 faz circular cinco livros de autoria de Astrojildo Pereira (Crítica impura: autores e problemas, Formação do PCB, Interpretações, Machado de Assis: ensaios e apontamentos avulsos e URSS Itália Brasil). Quem tem alguma noção sobre o mercado editorial sabe o quanto essa iniciativa merece ser destacada. Bem, mas, tenho aqui o trabalho de Martin Cezar Feijó e com ele, assim como com os livros de autoria do próprio Astrojildo, um manancial para que as jovens gerações tenham a devida atenção para um entre tantos personagens que marcaram nosso mundo político e cultural.

 

Humberto Silva é professor da FAAP, critico de cinema e membro da Abraccine.