contos_do_escritorio_-_reproducao_-_divulgacao.jpgDesnecessário dizer que a literatura argentina é uma das mais potentes no espanhol latino-americano. É vastamente sabido, igualmente, que os grandes escritores portenhos foram traduzidos para o português. Dos escritores do século XIX – Domingos Sarmiento e seu Facundo, Ou Civilização e Barbárie – até os mais recentes, podemos acompanhar os diversos momentos dessa literatura que se renova a cada geração. Tamanha profusão de escritores argentinos, temos agora pela primeira vez em português um dos nomes de proa da prosa literária dos anos de 1920: Roberto Mariani, que frequentou o Grupo de Boedo, ao lado de Roberto Arlt, este sim amplamente traduzido. Uma nota necessária: o Grupo de Boedo se caracterizou por sua temática social, suas ideias de esquerda e seu vínculo com o movimento operário.

 

De Mariani temos agora Contos do escritório (Martin Claret, 128 págs., na tradução de Renata Moreno). Chamo a atenção inicialmente para o desafio da tradução. Mariani, lembremos, é um escritor cuja obra se circunscreve aos anos de 1920 e 1930, com foco no ambiente de trabalho e no cotidiano de segmento social da classe média baixa de Buenos Aires, para compararmos ao que hoje reconheceríamos nos estratos sociais. De algum modo, nos acostumamos a ler escritores argentinos que retratam as elites. Mas a dificuldade de tradução, suponho, está no desafio de verter para o português um mundo social, uma época, com costumes para os quais temos poucas referências. A linguagem, a esse respeito, pode trazer armadilhas terríveis: como traduzir, por exemplo, uma função profissional que existiu naquele momento, naquele meio, e que não existe mais e possivelmente jamais existiu similar no Brasil? Apenas posso especular sobre as dificuldades que teve a tradutora.

Contos do escritório reúne narrativas de funcionários que trabalham numa repartição de escritório. Mariani, cabe frisar, não nomeia a empresa. Ele menciona tão só espaços: o almoxarifado, o depósito, o estoque, a contadoria, expedições etc. Certo, mas embora o título do livro remeta à ideia de “contos”, estes, ao contrário do que se possa supor num livro de contos, não são autônomos. As narrativas se entrelaçam, os personagens se cruzam a todo momento. Trata-se, na verdade, de um mosaico de situações. Em cada episódio um personagem é destacado, pois envolto em um acontecimento que perturba o ambiente. E assim, destacado, é contada a vida desse personagem dentro e fora da repartição. Suas agruras, seus anseios, horizonte de vida, afinidades políticas, dívidas e dificuldades de sobrevivência em cortiços que no passado foram majestosos casarões. Ainda que Mariani seja mais alusivo que descritivo, sua narrativa antevê as condições de desconforto material em que moram seus personagens. Um dado que vale ressaltar: os episódios de Contos do escritório têm final aberto, deixam ao leitor a possibilidade de extrair suas próprias conclusões. Por isso, fica no ar a impressão de fábula moral.

Um aspecto do livro que desnorteia o leitor é o foco narrativo. O conto de abertura, Balada do escritório, tem como narrador o próprio escritório, que, em primeira pessoa, convida o trabalhador para o local de trabalho. Já o segundo conto, Rillo, é narrado em terceira pessoa, mas o narrador é citado ao longo da narrativa. No terceiro conto, por sua vez, Santana, o narrador é onisciente é descreve os acontecimentos na forma de diário. O conto seguinte, Riverita, é narrado em primeira pessoa e o narrador participa do que ocorre. Por fim, o conto que encerra o livro, A ficção, exibe uma conversa entre crianças dos trabalhadores da repartição do escritório intercalada por observações de um personagem ausente. Esse ziguezague, penso, atordoa o leitor. Agora, creio que com esse procedimento Mariani visa oferecer impressões diversas sobre como cada personagem circula no ambiente de trabalho e em sua vida privada. Com esse procedimento, assim me parece, Contos do escritório pulveriza a perspectiva de um olhar privilegiado para o que se passa no escritório.

O que, de qualquer forma, me parece frágil no livro é que Mariani apenas sonda o ambiente: inúmeros personagens despontam e acabam soltos, desgarrados, e mesmo os que pontuam os contos são retratados com traços até certo ponto ingênuos. Claro, é um procedimento dele, e revelador de seu estilo, mas ao fim a sensação de puerilidade; ou, caso contrário, o livro é pouco poroso à capacidade de o leitor apreender aquele mundo. Mas, bem entendido, trata-se de um escritor bem curioso. Sua leitura se abre para uma visão do mundo social de Buenos Aires na década de 1920, e assim nos dá pistas para especularmos sobre a classe trabalhadora portenha. Portanto, o mundo de uma classe social de que temos poucas referências.

 

Humberto Pereira da Silva é professor da FAAP, crítico de cinema e membro da Abraccine.