Quase todos certamente já ouviram falar no Padre Cícero (1844-1934), que é objeto de veneração por parte de fiéis católicos, principalmente no nordeste do Brasil. Anualmente uma verdadeira leva de romeiros se dirige a Juazeiro do Norte, cidade que, por conta da fé e do culto a Padre Cícero, se transformou na mais importante metrópole do interior cearense.
A Igreja Católica Romana promoveu, entre o final do século XIX e primórdios do século XX, uma verdadeira batalha jurídica contra o Padre Cícero Romão Batista, acusando-o de se aproveitar da fé popular e rústica dos sertanejos nordestinos, valendo-se de fenômenos triviais apresentados como milagres. Batalha jurídica protagonizada sob o pálio do Direito Canônico: Cícero foi suspenso das ordens sacerdotais (não podia celebrar missa ou ministrar qualquer sacramento); foi até excomungado, decisão que não chegou a seu conhecimento e que acabou sendo revogada.
Tudo aconteceu em função de um suposto milagre vivenciado pela beata Maria de Araújo, em cuja boca a hóstia servida por Padre Cícero, durante a Missa, teria um dia se transformado em sangue, fenômeno que se repetiu por várias vezes posteriormente. Confrontados os fatos num processo canônico instaurado pela Diocese de Fortaleza, após várias peripécias processuais constatou-se que, na verdade, tudo não teria passado de uma grosseira fraude, o que redundou na imposição das penas ao sacerdote, que debalde foi até Roma para defender-se perante o Santo Ofício, nome que já então se aplicava à antiga Inquisição.
Punido pela Igreja, mas ainda considerado milagreiro pela religiosidade popular, o Padre Cícero passa a dedicar-se à Política, acolitado pelo aventureiro baiano Floro Bartolomeu, misto de médico, minerador e rábula. Em 1914, Cícero foi o líder espiritual de uma revolução regional que acabou por tomar a capital Fortaleza, depondo o governador (na época chamado de presidente) do Ceará sob o consentimento tácito da Administração Federal, insatisfeita com a derrota política de Antônio Pinto Nogueira Accioly, representante da aristocracia rural que por duas décadas dera as cartas na política cearense. Nessa revolução popular, realizada por cabras, jagunços e cangaceiros, o líder material foi exatamente Floro Bartolomeu, que posteriormente se elegeria deputado federal.
Padre Cícero morreu em 1934, aos noventa anos, com um patrimônio considerável composto de fazendas, sítios e imóveis urbanos, patrimônio esse decorrente das incontáveis esmolas e doações recebidas de romeiros e simpatizantes, e que em sua maior parte foi doado ou deixado em testamento para a Igreja Católica, que tanto o combatera e tanto recriminara sua convivência com a fé sertaneja.
Ao que tudo indica, a mesma Igreja Católica pretende agora reabilitar canonicamente o Padre Cícero (para, quem sabe, canonizá-lo posteriormente?), a fim de fazer frente à crescente influência das igrejas evangélicas. Seria o Padre Cícero, portanto, um santo ou um impostor? A resposta cabe a cada uma das pessoas, católicas ou não católicas, crentes ou descrentes, que se aventurarem à leitura da excelente e recente biografia do famoso padre escrita pelo jornalista Lira Neto (Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão – Companhia das Letras, 2009).
J. Dantas de Oliveira é advogado em São Carlos.